sexta-feira, 4 de maio de 2012

Julgava como uma solteirona de cinquenta anos amargurada com a vida, muito embora tivesse apenas vinte e três. Piscava freneticamente os olhos sempre que podia, meio que para espantar a visão daquela família feliz de sua frente. Sua irmã sempre fora a favorita, sempre. Até mesmo a vida a favoreceu mais. Bebeu o vinho.

Bebia como uma solteirona de cinquenta anos amargurada com a vida, muito embora tivesse apenas vinte e três. Retocava freneticamente o batom e a maquiagem, meio que para conservar a máscara química que a protegia. Ninguém nunca a amou, nunca. Sabia disso, principalmente por nunca ter amado ninguém. Tragou o cigarro.

Fumava como uma solteirona de cinquenta anos amargurada com a vida, muito embora tivesse apenas vinte e três. Tossia freneticamente o mais alto possível, como que para chamar a atenção e fazer-se de vítima. Não funcionava, todos na sala já haviam se acostumado com ela. Apesar disso, quando alguém lhe oferecia ajuda, consolo, ela desprezava fulminantemente. Gostava de desprezar, mas gostava mais de poder desprezar. Foi às compras.

Comprava como uma solteirona de cinquenta anos amargurada com a vida, muito embora tivesse apenas vinte e três. Usava de seu cartão de crédito ilimitado como uma forma de preencher o vazio que sentia dentro de si. De roupas, sapatos e bolsas a televisões, carros e viagens, tudo para ela era um estepe momentâneo, alívio efêmero de uma dor que persistia. Ópio curto, heroína dos fracos... Toda semana chegava em casa - morava sozinha - com algumas sacolas novas de compras. Foi ao banheiro se olhar no espelho.

Chorava como uma solteirona de cinquenta anos amargurada com a vida, muito embora tivesse apenas vinte e três. Se via sempre com aquela tonelada de maquiagem, aquelas roupas caras, aquele olhar de desprezo que, sabia, mas tentava esconder, era direcionado a ela mesma. Lágrimas grossas lhe sujaram o rosto pintado, e os soluços mal contidos ignoravam as barreiras tênues que suas mãos ofereciam. Chorava por horas, às vezes. Lá, em sua frígida casa, não havia ninguém para que pudesse desprezar o consolo oferecido. Lembrou de sua irmã.

Ah, sua irmã, aquela desgraçada. Casou com aquele homem horroroso, mal dava pra viver com os salários que ganhavam, e aqueles filhos nojentos e catarrentos... Deus me livre, jamais quero isso pra mim. Mas eles se beijavam com tanta paixão e o olhar que trocavam com os filhos era aquele que ela nunca conseguiu ganhar dos pais. Alegria de pobre é fácil. Limpou o rosto.

Julgava como uma solteirona de cinquenta anos amargurada com a vida, muito embora tivesse apenas vinte e três.

Um comentário:

  1. Que coisa mais incrível esse desenho caricato de uma criatura não tão caricata. E porque desenho caricato? Realista, incrivelmente realista e poético. Uma construção chicobuarquiana da desconstrução do ser, um pantum olavobilaquiano, não deixa de ser poesia, não deixa de ter sangue e bombeá-lo. Falo sério, não é puxação de saco. Se existisse furto de textos, levante a mão, isso é um assalto. Em muitas partes me vi nessa personagem neo-balzaquiana, não em tudo. Afinal, não fumo, mas hora ou outra pareço estar fazendo-o automaticamente, isso, convenhamos, já é um passo!
    Comentei como um solteirão de cinquenta anos.

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