segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Surpresa: a Tunísia era uma ditadura - Igor Fuser

Quando eu ingressei como redator na editoria de assuntos internacionais da Folha de S.Paulo, um colega veterano me ensinou como se fazia para definir quais, entre as centenas de notícias que recebíamos diariamente, seriam merecedoras de destaque no jornal do dia seguinte. "É só olhar os telegramas das agências e ver o que elas acham mais importante", sentenciou. Pragmático, ele adotava esse método como um meio seguro de evitar que o noticiário da Folha destoasse dos jornais concorrentes, os quais, por sua vez, se comportavam do mesmo modo. Na realidade, portanto, quem pautava a cobertura internacional da imprensa brasileira era um restrito grupo de três agência noticiosas -- Reuters, Associated Press e United Press International, todas afinadíssimas com as prioridades geopolíticas dos Estados Unidos.


Passadas mais de duas décadas, a cobertura internacional da mídia brasileira ainda se orienta por diretrizes estrangeiras. A única diferença é que agora as agências enfrentam a competição de outros fornecedores de informação, como a CNN e os serviços de empresas como a BBC e o New York Times, oferecidos pela internet. Mas o conteúdo é o mesmo. O resultado é que as informações internacionais que circulam pelo planeta, reproduzidas com mínimas variações em todos os continentes, são quase sempre aquelas que correspondem aos interesses de Washingon.


Quem confia nessa agenda está condenado uma visão parcial e distorcida, uma ignorância que só se revela quando ocorrem "surpresas" como a rebelião popular que derrubou o governo da Tunísia. De repente, o mundo tomou conhecimento de que a Tunísia -- um país totalmente integrado à ordem neoliberal e um dos destinos favoritos dos turistas europeus -- era governada há 23 anos por um ditador corrupto, odiado pelo seu povo. Como é que ninguém sabia disso?


A mídia silenciou sobre o despotismo na Tunísia porque se tratava de um regime servil aos interesses políticos e econômicos dos EUA. O ditador Ben Ali nunca foi repreendido por violações aos direitos humanos e, mesmo quando ordenou que suas forças repressivas abrissem fogo contra manifestantes desarmados, matando dezenas de jovens, o presidente estadunidense Barack Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, permaneceram em silêncio. Não abriram a boca nem mesmo para tentar conter o massacre. Só se manifestaram depois que Ben Ali fugiu do país, como um rato, carregando na bagagem mais de uma tonelada de ouro.


O caso da Tunísia não é o único na região.


No vizinho Egito, outro regime vassalo dos EUA, Hosni Mubarak governa ditatorialmente desde 1981. Suas prisões estão lotadas de opositores políticos e as eleições ocorrem em meio à fraude e à violência, o que garante ao governo quase todas as cadeiras parlamentares. Mas o que importa, para o "Ocidente", é o apoio da ditadura egípcia às posições estadunidenses no Oriente Médio, em especial sua conivência com o expansionismo israelense.


Por isso, a ausência de democracia em países como a Tunísia e o Egito nunca recebe a atenção da mídia convencional, ao contrário da condenação sistemática de regimes autoritários não-alinhados com os EUA, como o Irã e o Zimbábue. É sempre assim: dois pesos, duas medidas.



Igor Fuser é jornalista, doutorando em Ciência Política na USP, professor na Faculdade Cásper Líbero e membro do Conselho Editorial do Brasil de Fato.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Entrevista com Julian Assange

Julian Assange é o fundador do polêmico site Wikileaks, responsável pelo chamado "Cablegate", o vazamento de 250.000 documentos e telegramas da embaixada americana nos mais diversos países. Assange está agora em prisão domiciliar na casa de um amigo, na Inglaterra após ter sido preso em Londres por alguns dias, sob alegação de crime sexual. Assange teme a extradição e a possível execução. Entre seus inimigos estão empresas como a Mastercard, a Visa, o Paypal, e diversas outras gigantes. Segundo Sarah Palin e outros políticos do Partido Republicano, nos Estados Unidos, Assange deve ser visto e procurado como um terrorista, e que coloca vida de pessoas em risco ao vazar os arquivos. Para muitos uma ameaça e para muitos outros, um símbolo da luta pela transparência e liberdade de expressão, Julian Assange é, com certeza, um dos homens mais polêmicos desta década. A seguir a entrevista, editada por Natalia Viana, e feita por internautas brasileiros.



Vários internautas - O WikiLeaks tem trabalhado com veículos da grande mídia – aqui no Brasil, Folha e Globo, vistos por muita gente como tendo uma linha política de direita. Mas além da concentração da comunicação, muitas vezes a grande mídia tem interesses próprios. Não é um contra-senso trabalhar com eles se o objetivo é democratizar a informação? Por que não trabalhar com blogs e mídias alternativas?

Por conta de restrições de recursos ainda não temos condições de avaliar o trabalho de milhares de indivíduos de uma vez. Em vez disso, trabalhamos com grupos de jornalistas ou de pesquisadores de direitos humanos que têm uma audiência significativa. Muitas vezes isso inclui veículos de mídia estabelecidos; mas também trabalhamos com alguns jornalistas individuais, veículos alternativos e organizações de ativistas, conforme a situação demanda e os recursos permitem.

Uma das funções primordiais da imprensa é obrigar os governos a prestar contas sobre o que fazem. No caso do Brasil, que tem um governo de esquerda, nós sentimos que era preciso um jornal de centro-direita para um melhor escrutínio dos governantes. Em outros países, usamos a equação inversa. O ideal seria podermos trabalhar com um veículo governista e um de oposição.

Marcelo Salles – Na sua opinião, o que é mais perigoso para a democracia: a manipulação de informações por governos ou a manipulação de informações por oligopólios de mídia?

A manipulação das informações pela mídia é mais perigosa, porque quando um governo as manipula em detrimento do público e a mídia é forte, essa manipulação não se segura por muito tempo. Quando a própria mídia se afasta do seu papel crítico, não somente os governos deixam de prestar contas como os interesses ou afiliações perniciosas da mídia e de seus donos permitem abusos por parte dos governos. O exemplo mais claro disso foi a Guerra do Iraque em 2003, alavancada pela grande mídia dos Estados Unidos.

Eduardo dos Anjos – Tenho acompanhado os vazamentos publicados pela sua ONG e até agora não encontrei nada que fosse relevante, me parece que é muito barulho por nada. Por que tanta gente ao mesmo tempo resolveu confiar em você? E por que devemos confiar em você?

O WikiLeaks tem uma história de quatro anos publicando documentos. Nesse período, até onde sabemos, nunca atestamos ser verdadeiro um documento falso. Além disso, nenhuma organização jamais nos acusou disso. Temos um histórico ilibado na distinção entre documentos verdadeiros e falsos, mas nós somos, é claro, apenas humanos e podemos um dia cometer um erro. No entanto até o momento temos o melhor histórico do mercado e queremos trabalhar duro para manter essa boa reputação.

Diferente de outras organizações de mídia que não têm padrões claros sobre o que vão aceitar e o que vão rejeitar, o WikiLeaks tem uma definição clara que permite às nossas fontes saber com segurança se vamos ou não publicar o seu material.

Aceitamos vazamentos de relevância diplomática, ética ou histórica, que sejam documentos oficiais classificados ou documentos suprimidos por alguma ordem judicial.

Vários internautas – Que tipo de mudança concreta pode acontecer como consequência do fenômeno Wikileaks nas práticas governamentais e empresariais? Pode haver uma mudança na relação de poder entre essas esferas e o público?

James Madison, que elaborou a Constituição americana, dizia que o conhecimento sempre irá governar sobre a ignorância. Então as pessoas que pretendem ser mestras de si mesmas têm de ter o poder que o conhecimento traz. Essa filosofia de Madison, que combina a esfera do conhecimento com a esfera da distribuição do poder, mostra as mudanças que acontecem quando o conhecimento é democratizado.

Os Estados e as megacorporações mantêm seu poder sobre o pensamento individual ao negar informação aos indivíduos. É esse vácuo de conhecimento que delineia quem são os mais poderosos dentro de um governo e quem são os mais poderosos dentro de uma corporação.

Assim, o livre fluxo de conhecimento de grupos poderosos para grupos ou indivíduos menos poderosos é também um fluxo de poder, e portanto uma força equalizadora e democratizante na sociedade.

Marcelo Träsel - Após o Cablegate, o Wikileaks ganhou muito poder. Declarações suas sobre futuros vazamentos já influenciaram a bolsa de valores e provavelmente influenciam a política dos países citados nesses alertas. Ao se tornar ele mesmo um poder, o Wikileaks não deveria criar mecanismos de auto-vigilância e auto-responsabilização frente à opinião pública mundial?

O WikiLeaks é uma das organizações globais mais responsáveis que existem.

Prestamos muito mais contas ao público do que governos nacionais, porque todo fruto do nosso trabalho é público. Somos uma organização essencialmente pública; não fazemos nada que não contribua para levar informação às pessoas.

O WikiLeaks é financiado pelo público, semana a semana, e assim eles “votam” com as suas carteiras.

Além disso, as fontes entregam documentos porque acreditam que nós vamos protegê-las e também vamos conseguir o maior impacto possível. Se em algum momento acharem que isso não é verdade, ou que estamos agindo de maneira antiética, as colaborações vão cessar.

O WikiLeaks é apoiado e defendido por milhares de pessoas generosas que oferecem voluntariamente o seu tempo, suas habilidades e seus recursos em nossa defesa. Dessa maneira elas também “votam” por nós todos os dias.

Daniel Ikenaga – Como você define o que deve ser um dado sigiloso?

Nós sempre ouvimos essa pergunta. Mas é melhor reformular da seguinte maneira: “quem deve ser obrigado por um Estado a esconder certo tipo de informação do resto da população?”

A resposta é clara: nem todo mundo no mundo e nem todas as pessoas em uma determinada posição. Assim, o seu médico deve ser responsável por manter a confidencialidade sobre seus dados na maioria das circunstâncias – mas não em todas.

Vários internautas – Em declarações ao Estado de São Paulo, você disse que pretendia usar o Brasil como uma das bases de atuação do WikiLeaks. Quais os planos futuros? Se o governo brasileiro te oferecesse asilo político, você aceitaria?

Eu ficaria, é claro, lisonjeado se o Brasil oferecesse ao meu pessoal e a mim asilo político. Nós temos grande apoio do público brasileiro. Com base nisso e na característica independente do Brasil em relação a outros países, decidimos expandir nossa presença no país. Infelizmente eu, no momento, estou sob prisão domiciliar no inverno frio de Norfolk, na Inglaterra, e não posso me mudar para o belo e quente Brasil.

Vários internautas – Você teme pela sua vida? Há algum mecanismo de proteção especial para você? Caso venha a ser assassinado, o que vai acontecer com o WikiLeaks?

Nós estamos determinados a continuar a despeito das muitas ameaças que sofremos. Acreditamos profundamente na nossa missão e não nos intimidamos nem vamos nos intimidar pelas forças que estão contra nós.

Minha maior proteção é a ineficácia das ações contra mim. Por exemplo, quando eu estava recentemente na prisão por cerca de dez dias, as publicações de documentos continuaram.

Além disso, nós também distribuímos cópias do material que ainda não foi publicado por todo o mundo, então não é possível impedir as futuras publicações do WikiLeaks atacando o nosso pessoal.

Helena Vieira - Na sua opinião, qual a principal revelação do Cablegate? A sua visão de mundo, suas opiniões sobre nossa atual realidade mudou com as informações a que você teve acesso?

O Cablegate cobre quase todos os maiores acontecimentos, públicos e privados, de todos os países do mundo – então há muitas revelações importantíssimas, dependendo de onde você vive. A maioria dessas revelações ainda está por vir.

Mas, se eu tiver que escolher um só telegrama, entre os poucos que eu li até agora – tendo em mente que são 250 mil – seria aquele que pede aos diplomatas americanos obter senhas, DNAs, números de cartões de crédito e números dos vôos de funcionários de diversas organizações – entre elas a ONU.

Esse telegrama mostra uma ordem da CIA e da Agência de Segurança Nacional aos diplomatas americanos, revelando uma zona sombria no vasto aparato secreto de obtenção de inteligência pelos EUA.

Tarcísio Mender e Maiko Rafael Spiess - Apesar de o WikiLeaks ter abalado as relações internacionais, o que acha da Time ter eleito Mark Zuckerberg o homem do ano? Não seria um paradoxo, você ser o “criminoso do ano”, enquanto Mark Zuckerberg é aplaudido e laureado?

A revista Time pode, claro, dar esse título a quem ela quiser. Mas para mim foi mais importante o fato de que o público votou em mim numa proporção vinte vezes maior do que no candidato escolhido pelo editor da Time. Eu ganhei o voto das pessoas, e não o voto das empresas de mídia multinacionais. Isso me parece correto.

Também gostei do que disse (o programa humorístico da TV americana) Saturday Night Live sobre a situação: “Eu te dou informações privadas sobre corporações de graça e sou um vilão. Mark Zuckerberg dá as suas informações privadas para corporações por dinheiro – e ele é o ‘Homem do Ano’.”

Nos bastidores, claro, as coisas foram mais interessantes, com a facção pró- Assange dentro da revista Time sendo apaziguada por uma capa bastante impressionante na edição de 13 de dezembro, o que abriu o caminho para a escolha conservadora de Zuckerberg algumas semanas depois.

Vinícius Juberte – Você se considera um homem de esquerda?

Eu vejo que há pessoas boas nos dois lados da política e definitivamente há pessoas más nos dois lados. Eu costumo procurar as pessoas boas e trabalhar por uma causa comum.

Agora, independente da tendência política, vejo que os políticos que deveriam controlar as agências de segurança e serviços secretos acabam, depois de eleitos, sendo gradualmente capturados e se tornando obedientes a eles.

Enquanto houver desequilíbrio de poder entre as pessoas e os governantes, nós estaremos do lado das pessoas.
Isso é geralmente associado com a retórica da esquerda, o que dá margem à visão de que somos uma organização exclusivamente de esquerda. Não é correto. Somos uma organização exclusivamente pela verdade e justiça – e isso se encontra em muitos lugares e tendências.

Ariely Barata – Hollywood divulgou que fará um filme sobre sua trajetória. Qual sua opinião sobre isso?

Hollywood pode produzir muitos filmes sobre o WikiLeaks, já que quase uma dúzia de livros está para ser publicada. Eu não estou envolvido em nenhuma produção de filme no momento.

Mas se nós vendermos os direitos de produção, eu vou exigir que meu papel seja feito pelo Will Smith. O nosso porta-voz, Kristinn Hrafnsson, seria interpretado por Samuel L Jackson, e a minha bela assistente por Halle Berry. E o filme poderia se chamar “WikiLeaks Filme Noire”.



Entrevista orginalmente publicada no site https://cartacapitalwikileaks.wordpress.com/

domingo, 9 de janeiro de 2011

George Orwell

Transcrevi para o blog alguns trechos do livro de Emmanuel Goldstein, personagem fictício do famoso romance distópico de George Orwell 1984. O livro é muito abrangente, mas quis me focar em apenas um dos vários pontos apresentados. Espero que leiam, gostem e reflitam tanto quanto eu o fiz.

(*Duplipensar se trata da "habilidade" de pensar, ao mesmo tempo, duas coisas totalmente contraditórias. A palavra foi inventada por Orwell e incorporada no dialeto oficial da Oceania [supernação onde a história se passa], Novilíngua, como forma de criticar a abordagem midiática)

"Em épocas anteriores, as distinções (de classes sociais; hierarquias) não tinham sido apenas inevitáveis como desejáveis. A desigualdade era o preço da civilização. Todavia, com o desenvolvimento da produção a máquina, alterou-se o caso. Mesmo que ainda fosse necessário aos seres humano desempenhar diferentes tipos de profissão, já não era preciso que vivessem em diferentes níveis sociais ou econômicos. Portanto, do ponto de vista dos novos grupos que estavam a pique de tomar o poder, a igualdade humana não era mais um ideal a atingir, era um perigo a evitar."



"O paraíso terreno se desacreditara no momento exato em que se tornara realizável."
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"O objetivo primário da guerra moderna (segundo os princípios do duplipensar*, essa meta é simultaneamente reconhecida e não reconhecida pelos cérebros orientadores do Partido Interno) é usar os produtos da máquina sem elevar o padrão de vida geral. Desde o fim do século dezenove, foi latente na sociedade industrial o problema de dar fins ao excesso de artigos de consumo. Atualmente, que poucos seres humano têm bastante para comer, esse problema evidentemente não urge, e assim poderia vir a ser, mesmo sem a intervenção de um processo destruidor artificial."


"Desde o momento em que a máquina surgiu, tornou-se claro a todos que sabiam raciocinar que desaparecera em grande parte a necessidade do trabalho braçal do homem e, portanto, a da desigualdade humana. Se a máquina fosse deliberadamente utilizada com esse propósito, a fome, o excesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doença poderiam ter sido eliminados em algumas gerações. E na verdade, sem ter sido usada com esse propósito, porém por uma espécie de processo automático – produzindo riqueza que às vezes se tornava impossível deixar de distribuir – a máquina elevou grandemente o padrão de vida do ser humano comum, num período de uns cinquenta anos, ao fim do século dezenove e no começo do vinte."


"Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição – com efeito, de certo modo era a destruição – de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem um pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuíssem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza,no sentido de posse pessoal de bens de luxos, fosse igualmente distribuída, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruídos, a grande massa de seres humanos, normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e aprenderia a pensar por si; e uma vez que isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada e acabaria com ela. De maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na base da pobreza e da ignorância."


"O essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruídas, sua manufatura ainda é um modo convincente de gastar mão de obra sem produzir nada que se possa consumir. (... ) Em princípio, o esforço bélico é sempre planejado de maneira a consumir qualquer excesso que possa existir depois de satisfeitas as necessidades mínimas da população. Na prática, as necessidades da população são sempre subestimadas, e o resultado é haver uma escassez crônica de metade dos essenciais, mas isto é considerado vantagem. É uma política consciente manter perto do sofrimento até os grupos favorecidos porquanto o estado geral da escassez aumenta a importância dos pequenos privilégios e assim amplia a distinção entre um grupo e outro."


"A atmosfera social é de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo diferencia entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em guerra e portanto em perigo, faz parecer natural a entrega de todo poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência."


"Veremos que a guerra não apenas realiza a necessária destruição como a efetua de maneira psicologicamente aceitável. Em princípio, seria bastante simples gastar o excesso de mão de obra construindo templo e pirâmides, cavando buracos e tornando a enchê-los, ou mesmo produzindo grandes quantidades de mercadorias e queimando-as. Mas isso só daria a base econômica, mas não a emocional, de uma sociedade hierárquica. Trata-se aqui não do moral das massas, cuja atitude não tem importância, contanto que sejam mantidas no trabalho, mas do moral do Partido. Espera-se que até mesmo o mais humilde membro do partido seja competente, industrioso e inteligente, dentro de estreitos limites, porém é também necessário que seja um fanático crédulo e ignorante, cujas reações principais sejam medo, ódio, adulação, e triunfo orgiástico. Em outras palavras, é necessário que tenha a mentalidade apropriada ao estado de guerra."





Infelizmente, este vídeo, vazado e divulgado pelo site Wikileaks, não faz parte da ficção de Orwell. Faz parte da nossa própria realidade. Podemos facilmente traçar um paralelo entre a guerra contínua do Partido, no livro de Orwell, e nossas próprias guerras, infindaveis, cada vez contra um novo inimigo. Se o Iraque foi aliado dos Estados Unidos no passado, agora é inimigo e sua aliança nunca existiu. E assim como na "Oceania" retratada no livro, o inimigo do "Partido" é o mal supremo e sempre foi. Isso é só uma das muitas, muitas semelhanças entre nossa realidade e a ficção de George Orwell. Leiam o livro, tracem seus paralelos, pensem, critiquem, levantem-se, falem e façam sua voz ser ouvida.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Feliz Ano Novo!

Sim, eu sei que hoje é dia 5.





Chovia, como em quase todos os Reveillons que já tinha passado. Fabio voltava da joalheria, fora comprar o presente atrasado para sua mulher, além de ser Ano Novo, faziam 24 anos de casados. No ano seguinte fariam Bodas de Prata e ele não fazia a menor ideia de como deveria lidar com isso. Tirou o pequeno embrulho da sacola e colocou no bolso para não molhar. Estava a pé, Reveillon de carro era quase impossível naquela cidade. Resolveu pegar um atalho, queria chegar em casa o quanto antes. Era um beco escuro, famoso por ser ponto de bang, uma evolução do crack, ainda pior em seus efeitos. Foi mesmo assim. Viu figuras escuras, pessoas encolhidas, tomando chuva na cara e não parecendo perceber, gemendo e murmurando coisas sem sentido. Uma das figuras o agarrou pelo casaco italiano. "Midá! Dádinhero! Percisu!", disse a figura desfigurada, antes de cair de cara no chão e cavar o asfalto com a mão nua. Fabio se apressou, fez o possível para ignorar aquelas sombras, cacos do que um dia foram pessoas.



Via a luz, a praça principal da cidade, um simpático conjunto de lojas e restaurantes. Caros, claro. Não é qualquer um que podia frequentar a praça central. Lá era assim, quem tinha dinheiro ficava na praça iluminada por seus postes clássicos, decorada com bancos chiques e arranjos de plantas, frequentava suas lojas e sua igreja barroca. Quem não tinha ficava nos becos escuros ao redor da praça, onde o santuário religioso se restringia às latas de lixo. No entanto, a praça estava movimentada, na verdade, estava lotada. Dezenas, centenas de pessoas erguiam as mãos e bradavam num caos tal que era impossível distinguir as palavras. Em faixas, frases estavam estampadas como "Liberdade é um direito todos, Igualdade é uma necessidade da maioria", "Nós SABEMOS", "Estamos de OLHO EM VOCÊS". Mas o que mais espantou Fabio é que não podia ver os rostos dos manifestantes... todos eles estavam usando máscaras do "Carnevale di Venezia", de "columbinas" até "medicos della pestes", passando por "voltos" e "morettas". Apesar do formato das máscaras se repetirem, nenhuma máscara era igual à outra, fosse por um adorno em purpurina ou por um desenho específico. Fabio entendeu mais tarde que eram para mostrar que, mesmo sendo todos anônimos, mesmo sendo todos parecidos, eram indivíduos diferentes entre si, únicos em sua diferença pura e singular.



A chuva torrencial continuava caindo, e o protesto seguia. Fabio olhou no relógio, 22:40, ainda dava tempo de chegar antes da meia-noite, se corresse. Ele foi passando por entre os manifestantes, quando o primeiro tiro ressoou. Pareceu paralisar completamente o tempo e o espaço. Os manifestantes ansiosos e animados pararam com seus protestos e pareceram ainda tentar entender o que acontecera, Fabio sentiu o pulso acelerar e o pulmão inflar e esvaziar com surpreendente rapidez. Tinha medo, medo de não conseguir chegar em casa, medo de não ver sua esposa novamente, medo de não poder dar-lhe o presente, medo de não poder lhe dar bodas de prata. Reavaliou a importância de sua própria vida para si mesmo e outros ao seu redor e correu. Antes que a multidão se recuperasse do susto, Fabio estava correndo desesperadamente, empurrando e mergulhando nas brechas que encontrasse. Seria muito fácil chegar do outro lado se a multidão não houvesse acordado.



Foi com o segundo tiro.



Os manifestantes se desorganizaram, muitos fugiram, muitos foram encarar o batalhão de choque que os ameaçava com escudos e cassetetes. Fabio tropeçou, temeu cair e ser pisoteado, mas conseguiu se segurar no casaco de inverno de um dos manifestantes. Aos empurrões, conseguiu chegar à calçada oposta, agora precisava procurar o beco que o levava para outra rua. Ali na frente, perto do poste de luz ao estilo dos anos 50. Fabio se moveu com a maior agilidade que pôde e, antes que pudesse entrar no beco, um policial saiu de lá, segurando um cassetete em uma das mão e a outra a postos na cintura, Fabio percebeu pelo seu olhar que estava apavorado. Era um policial novato, com medo e com uma arma a seu alcance. Fabio sabia somar 1+1, sabia que se tentasse passar por aquele beco, o policial atiraria. Restava procurar outra pass... um homem se atirou contra o policial.



O terceiro tiro soou.



Dessa vez não para o alto. Fabio viu o homem cair com a mão segurando a ferida, pôde ouvir nitidamente seu gemido de dor por entre a barulheira do conflito. Viu o rosto por trás da máscara “volto” laranja com uma lua desenhada na fronte. Era o filho do padeiro. O filho do Vincenzo. Qual era mesmo o nome dele? Não conseguia lembrar, mas conhecia o garoto desde que era moleque, sempre comprara pão na padaria de seu pai. Terrível, não é justo alguém morrer assim, não é justo que jovens morram tão facilmente. Não é justo que ninguém morra tão facilmente. A vida não é justa, pensou. Sabia disto, mas sabia também que isso não era algo que deveria aceitar. Nenhuma dessas pessoas aceitava esta injustiça e elas estavam lutando por isso. Fabio foi até o garoto baleado. O policial que atirara nele estava em estado de choque. Sabia do risco que corria, sabia que poderia levar um tiro daquele garoto assustado, mas precisava ajudar o garoto, o filho de Vincenzo. “Chega pra lá! Eu sou médico!”, bradou Fabio, com autoridade, mesmo sabendo que não era médico, era um simples banqueiro, mas precisava fazer alguma coisa. O jovem policial chegou a fazer menção de apontar a arma, mas relaxou o braço. Lágrimas escorriam por sua face. “M-m-m-e desculpe... eu não... ele me atacou... eu só...”, Fabio ignorava as súplicas do jovem, apenas ajoelhou-se diante do filho de Vincenzo e examinou a ferida. O que deveria fazer? O garoto gemeu levemente de dor. “Shhh... Calma, vou concertar você.”, tranquilizou Fabio, mas seu rosto dizia outra coisa. Estava pálido, estava apavorado, não sabia o que estava fazendo, mas sabia que o garoto estava sangrando muito, e se não fossem a um hospital logo...

Fabio pressionou o ferimento de bala e berrou “Chama uma ambulância!”. Nenhuma resposta. Fabio olhou para o policial, nada. O policial fora embora, os manifestantes se preocupavam com os policiais os atacando com cassetetes e os policiais se preocupavam em acertar as devidas pancadas nos manifestantes. O celular estava sem sinal. Gritou por ajuda novamente “Alguém, por favor, chame uma ambulância”, disse ele, já a beira do abismo do luto e do desespero. As respostas eram as mesmas: gritos, alguns ainda pronunciavam as frases decoradas, que agora mais pareciam gritos de guerra e outros eram apenas frases monossilábicas, vogais, de vez em quando engasgadas por alguma consoante. Não, não haveria ajuda e Fabio já sabia disso. Estava por conta própria. Olhou novamente para o filho do padeiro, gemendo de dor, com os olhos semicerrados, encarando Fabio da melhor forma que podiam.



Mais três tiros.



Os gritos passaram a ser de terror puro e verdadeiro. As pessoas que ainda resistiam bateram em retirada, mulheres e homens choravam e corriam. Fabio sabia que se ficasse lá seria pisoteado pela multidão em fuga, junto com o garoto. Tinha uma escolha agora, ou deixava o garoto e fugia para salvar sua vida ou tentava salvá-lo e arriscava morrer. Se salvasse o garoto, ele estaria fazendo dois sacrifícios desnecessários, o mais lógico seria deixá-lo e salvar a própria vida, o garoto já estava morrendo, pelo amor de Deus, ninguém o julgaria por fazer isso, ninguém nem precisava saber. Isso não era verdade, ele saberia e a ideia de deixar uma pessoa morrer para salvar sua vida lhe repugnava. Não conseguiria olhar para si mesmo depois. O que faria? Não tinha muito tempo para pensar. Olhou para o garoto, cujos olhos conseguiram se abrir. Diferentes dos olhos castanhos do pai, Giuliano – era esse seu nome, lembrara agora – tinha olhos azuis, provavelmente iguais ao da mãe que Fabio nunca conhecera. Sua mãe, seu pai, todos os que o rodeavam. Se a ideia de deixar seus amados sozinhos o aterrorizara poucos minutos atrás, agora a ideia de deixar os pais do garoto e todos os que o amavam sofrerem também o abatia profundamente. Fizera sua decisão.



Estavam perto do beco de onde o policial surgira, lembrou-se.



Fabio se agarrou ao garoto ferido – Giuliano – e se jogou para o beco, rapidamente se recolhendo em um canto entre uma lata de lixo e uma parede de prédio. O garoto ainda em seus braços. Viu as pessoas passarem, apressadas, atropelando o que havia em sua frente, tropeçando e se levantando antes que fossem pisoteadas, berrando gritos de libertação e de terror, deixando máscaras e cartazes caírem. Depois, viu os policiais marchando atrás, os escudos transparentes com faixas pretas escritas “CHOQUE” em amarelo, suas pesadas botas pretas esmagavam as máscaras e pisoteavam os cartazes ao passar. Não demorou mais de dois minutos para que toda a confusão acabasse. Um novo tipo de barulho então se fez presente. Urros confusos e animalescos vinham da escuridão do beco. Fabio olhou ao redor e viu figuras como as que vira antes, os zumbis modernos, dependentes para sempre da droga, nem vivos nem mortos, apenas estavam lá. Uma mulher segurava a cabeça com as duas mãos e berrava pelos filhos de volta, um homem de uns 45 anos olhava fascinado e hesitante para uma máscara “volto” cinza-claro partida ao meio, outra mulher, esta de aparentes 20 anos – embora, como os outros, devesse ser mais nova – balançava a cabeça para os lados e a cada duas balançadas gemia um “uh”. Fabio tentou segurar o garoto como segurara Helena no dia em que se casaram e, agora, passando os braços pelas pernas e tronco do garoto, achava que nunca tinha sentido tanta falta de Helena como sentia agora. Lacrimejava quando levantou-se com o garoto no colo e foi para o outro lado do beco. Lacrimejava enquanto via os dependentes da droga, e lacrimejava quando chegou a rua, vazia, mas onde já havia sinal no celular.



Primeiro ligou para a emergência e pediu uma ambulância. Segurou Giuliano até a ambulância chegar, menos de dois minutos depois. Ajudou a por o garoto na maca, deu as informações necessárias e assistiu a ambulância sumir na rua, em meio à névoa da noite chuvosa. Olhou no relógio, 23:00h. Incrível que tudo isso tenha durado 20 minutos. Meteu a mão no bolso para pegar um cigarro e sentiu o pacote do presente da esposa. Olhou de novo no relógio, 23:01. “É, pensou Fabio, deve dar tempo de chegar em casa antes de meia noite, se eu correr.” Um estrondo, luzes; os fogos já haviam começado, aqueles dos impacientes que não querem esperar até meia noite. “Fora de hora”, observou. Mas era bonito.

Fabio seguiu, acendendo o cigarro que pegara no bolso enquanto andava, a luz verde dos fogos timidamente tentando iluminar seu rosto, sem sucesso.