segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Foi escrito conforme fui pensando... deve estar cheio de incoerências e erros de português... eu poderia ler e consertar, mas não quero (ou Devaneios e Dúvidas)




O Mundo.

Este é só mais um daqueles devaneios da madrugada... Estava aqui experimentando um projeto musical do Serj Tankian (do System of a Down) de música folk armena e lendo uma reportagem sobre o movimento de ocupação de Wall Street (http://english.aljazeera.net/indepth/opinion/2011/10/20111030111545619.html) e, bem, sei lá... veio uma sensação de vazio e de preenchimento ao mesmo tempo. A música armena do Serj combinada ao sentimento de coletividade me fizeram ponderar por um momento... o que é o ser coletivo? O que é ser humano, mas ser armeno? Ser americano, mas ser republicano ou democrata? Não é engraçado que existam tantos adjetivos que englobam todos ou um enorme grupo e outros que só valem para cada pessoa individualmente? Entenda, não estou discutindo a funcionalidade dos adjetivos, claro que não. É óbvio que vão existir umas características gerais e outras individuais. Mas onde é a fronteira? Até onde somos seres individuais? Não fazemos nada sem outro... sem outros. Não somos nada, nem poderíamos ser, sem outras pessoas. E não falo apenas da praticidade de se viver em sociedade, falo característicamente, não seríamos nada sem aquele que se refere a nós. Seríamos o vácuo da lacuna do espaço vazio. Não teríamos importância.
Eu li uma vez, em algum lugar (se quem ler isso souber, me lembre, por favor), que se uma árvore cai na floresta, mas não tem ninguém para ver, a árvore não caiu. Achava que tinha entendido essa frase, mas creio que só agora tenho a compreensão completa. A importância do outro para nossa própria identidade é total e absoluta. Não existe eu sem nós.
"Somos parte dos 99 %", bradam os ocupantes em Wall Street, mas também em toda a Europa e também no Brasil. No mundo inteiro, eu diria. Este reconhecimento de coletividade é ao mesmo tempo incrível e conflituoso, isso ao meu ver. Se somos os 99 % (eu sou?), quem são os 1 %? A elite dominante, eles dirão, os donos do capital especulativo que causaram a crise que nos deixou deste jeito. São os motores da desigualdade e da ganância. Mas este 1% não faz parte de um todo? De um 100 %? Me pergunto se, caso não houvesse este 1 %, as pessoas estariam tão unidas e bradando em uníssonos hinos de coletividade... É necessário uma antítese, um vilão, um inimigo em comum para manter a unidade? Toda coletividade tem de ter um agente que mantenha a união por meio do desequilíbrio? Um rei, um faraó, um ditador, um setor financeiro hiperpoderoso? Um líder, em geral, quer lidere bem ou mal.
Me pergunto, nesse ponto, se o anarquismo é possível. Se, uma vez ganha a batalha contra a autoridade, as pessoas não vão se espalhar mais uma vez. É uma pergunta complicada... por mais que os entusiastas de ambos os lados queiram correr para a resposta, penso que parem, pensem, e considerem as opções por alguns minutos. A união quando se luta contra uma injustiça pode ser forte, mas, a partir do momento em que não há injustiças, vale a pena ser "1"?
O Mundo é feito de milhares de culturas diferentes... cada uma tem sua beleza. Ando pesquisando a música folk de certos países e é indescritível como são diferentes e belas em todas as suas nuances e diferenças... A Sociedade é partida em pedaços. Montar estes pedaços (que se modificaram com os anos) não é fácil, nem um pouco, fazer com que todos respeitem cada cultura é ainda mais complicado... são culturas, muitas vezes, completamente contrárias, mas ambas estão certas de acordo com suas convicções. Vou tentar achar uma imagem que um amigo postou no Facebook que retrata isto...  A União faz a força... mas também a fraqueza. A individualidade é extremamente frágil perante a potência de um ardor coletivo. Sem a capacidade de respeito mútuo, em uma sociedade unida, acabarão-se as diferenças culturais. A globalização, de certa forma, mostra isso. Com os meios (principalmente os informacionais) mais fluidos, as culturas estão, aos poucos, se deteriorando... No Japão, no Brasil, na Índia, na Alemanha, na Austrália e em todo o mundo se usa jeans. Não me espantaria ver um pinguin usando calças da coca-cola... Essa uniformização, dizem, é sintoma do capitalismo. O capitalismo é que causa esta... unipolaridade de valores, de quereres. Será? A mistura de culturas e a pressão de uma cultura mais forte (ou mais ampla) sobre outra, mais fraca, não acaba por dominar a mais fraca? Isto é comprovado historicamente. Não existia qualquer ideia de capitalismo em 1500 (Por favor, não vamos chamar o mercantilismo de capitalismo, hã? Acúmulo primitivo de capital pode ter resultado no capitalismo, mas não faz parte dele), mas a cultura portuguesa (e a espanhola) não foi imposta aos ameríndios? Não estão praticamente dizimados e falantes de português? O conflito entre culturas sempre existiu... Esparta x Atenas, cristãos x mouros, romanos x cristãos, cristãos x judeus, católicos x protestantes, enfim... isso só para citar alguns... a questão é que, quanto maior o alcance, maior será o embate entre culturas e hoje o alcance é global... e se o capitalismo é uma potencial arma cultural, ele é usado como tal. A questão aqui é se numa sociedade pós-capitalismo, continuarão a haver estes embates...


Aqui está a imagem!
"Tudo coberto, exceto os olhos. Que cultura machista cruel!"
"Nada coberto, exceto os olhos. Que cultura machista cruel!"

Achei a ironia da charge genial. Mostra, ao mesmo tempo, a nossa pretenção de achar que nossa cultura é a correta e a mesma pretenção de achar que temos o direito de julgar a cultura do outro... e saiba que o sentimento é recíproco!

Outra questão que eu gostaria de propor é o que fazer depois? Se estamos pensando numa mudança, o fim do sistema como conhecemos, o povo se uniu completamente e derrubou a elite vigente. E agora? vamos para o socialismo, o capitalismo social, o comunismo, o anarquismo, o Projeto Vênus, ou algo completamente diferente? O que não faltarão são mentes pensantes e entusiasmadas querendo dar sua opinião. Mas não se trata de uma pequena comunidade, estamos falando do mundo todo! São bilhões de pessoas precisando se organizar. Eu tenho uma visão maravilhosa do futuro pós organização... ilustrada pelo Peter Joseph no seu filme Zeitgeist (o terceiro, o Moving Forward, mostra isso mais claramente), mas como chegar até lá? E se nem todos concordarem? Faz o que? Força? Se fragmenta de novo? Surge um novo líder, com o risco de virar uma nova elite? São questões, como eu já disse, complicadas... É necessário que se crie uma sociedade que se respeite tanto a coletividade quanto a individualidade e beleza destas culturas, que são únicas e já estão se perdendo.


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O ENEM como mecanismo darwinista na educação

Neste último final de semana, alunos de todo o país (eu, inclusive) prestaram o Exame Nacional do Ensino Médio para conseguirem entrar nas respectivas faculdades. Vou tentar dissertar aqui sobre não só o ENEM, mas também todo o sistema de vestibular do Brasil e como isso compromete a educação. Lembre-se, leitor, é apenas meu ponto de vista e adoraria ser contestado. Sério, estou carente de discussões.

Bom, antes de mais nada, vou só fazer uma pequena (não tão pequena quanto eu queria, pelo visto) introdução. Estava eu ansioso (como todos, eu acho) para a prova de sábado (isso foi na quinta ou na sexta anterior), quando, após ouvir na televisão como Nietzsche e Darwin mudaram os paradigmas da história e etc, um devaneio acerca do evolucionismo darwinista me acertou e, como de costume, me desliguei do mundo real. A proposta de Darwin de um mundo competitivo, à la lei da selva se encaixa perfeitamente na estrutura do mundo moderno capitalista neoliberal (quer dizer, mais ou menos). Já ia dissertar sobre isso algum tempo atrás, lembrei, no início do ano, quando ia fazer um cansativo e cheio de clichés texto sobre como o capitalismo resgata o primitivismo, anulando a ideia de sociedade, nos trata como diferentes, falaria sobre como a competição é a única relação biológica que é negativa para os dois lados e blá blá blá. Enfim, misturaram-se os dois pensamentos e um flash em forma de frase me iluminou a cabeça: "O ENEM como mecanismo darwinista na educação". Bom, a iluminação parou por aí. Não faço ideia de como este texto vai ficar, só sei que vai ser bastante broxante (ou será brochante?) pra muita gente que espera ler uma crítica ao ENEM, se é isso que está procurando, se poupe... não é o que vai encontrar. E é assim por dois motivos: o primeiro é que eu não sou contra o ENEM e mesmo que fosse minha opinião é uma opinião de leigo e, portanto, reconheço minha total inaptidão para tocar no assunto "educação". O segundo motivo é que não quero ser taxado de "estudante com dor de corno", escrevendo um texto criticando o ENEM logo depois de ter lançado o gabarito oficial. Não vou dizer que não vai ter um pouco de dor de corno aí, até vai, mas não vai se focar nisso. Enfim... ao texto, né...


O ENEM mostra na prática como Darwin pode ser aplicado ao sistema burocrático do Estado. O basicão da evolução é a aquela célebre frase "a sobrevivência dos mais aptos". É, e como todo professor de biologia faz questão de repetir, lembrem-se: não é o mais forte, nem o mais inteligente, é aquele queé mais apto a viver ao meio. Falando em linguagem de ENEM, você pode ser o melhor da turma e tirar as melhores notas, se não tem o saco de ficar sentado na cadeira por dois dias fazendo 180 questões mais uma redação, você não entra na tão sonhada faculdade. É... infelizmente não é bem assim. Há quem ache que ENEM é chute de múltipla escolha... não é. Eu digo infelizmente, porque adoraria ter motivos para criticar o tal sistema e fazer a alegria dos meus leitores... mas é um negócio (esse troço de TRI) que, infelizmente, é bem estruturado... de ser usado na Alemanha e (eca) EUA. As críticas então são na base da falta de segurança e como sempre vaza ou algo do tipo. Queridos, acho muito complicado que não tenha nenhum erro numa prova de aplicação tão grande e tão, de certa forma, nova... são mais de 6 milhões de alunos fazendo a prova. Mas isso não justifica... só tenham em mente a evolução do sistema: se em 2009 chegou a ter uma prova cancelada, em 2010 vazou apenas o tema da redação e este ano foram 9 ou 13 questões, depende do ponto de vista (e se Deus quiser, não nos farão fazer essa maldita prova de novo). O ENEM evolui e aprende com os erros do passado... é inevitável uma implantação unificada do ENEM... eventualmente vai acontecer. A questão, na minha opinião, não é bem a forma como é aplicada a prova, específica ou objetiva, fácil ou difícil, mas o modo de se ingressar na faculdade. Vou explicar...


Relação candidato/vaga (UFRJ 2011) para

- Relações Internacionais: 44,33
- Medicina: 104,23
- Gastronomia: 115,88 (!!!)


E por aí vai, se você quer ver a lista toda, aqui está ela: http://www.vestibular.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=186:relacaocandidatovaga2011&catid=1:informacoes-gerais&Itemid=18


Se você é um aluno, sabe muito bem o quão assustadores são esses números. Não é meramente curioso que seja tão difícil ser médico? Ou mais ainda, ser um chef? Vivemos num constante déficit de vagas nas Universidades. Não sei se isso é pior ou de igual consternação ao critério de escolha da profissão pelo aluno. Não é a toa que medicina tem um número tão grande de candidatos (na UFRJ, ano passado, foram 8.026, de acordo com esta tabela), porra. Médico ganha bem, tem status, emprego praticamente garantido e certa estabilidade. Além do conhecido bom-mocismo (ele salva pessoas!). Com respeito a todos os médicos sérios por aí, tem muito médico filho da puta e ganhar dinheiro sendo filho da puta nessa área é mole! Quanto à gastronomia, juro que não faço ideia do motivo de tamanha procura.
A questão, no final, não é nem se um problema é pior que o outro, ambos estão fatalmente correlacionados. Então qual é a questão?


Se o critério para a escolha de profissão é o financeiro, é óbvio que muitas profissões vão ser deixadas de lado e outras vão ser mais requisitadas. E quais são cada uma acho que já sabemos. Vivemos numa sociedade técnica, prática e mesquinha. Esnobamos com nossos computadores portáteis e telas que respondem ao toque. Uma sociedade onde a única criatividade que é bem vinda é aquela que pode gerar lucro. E que seja prática! E sem gastar muito, também!! A criatividade, antes valorizada no meio artístico, com suas extensas raízes percorrendo os salões da música, da pintura e da arquitetura, hoje se vê enclausurada no Vale do Silício. Não é a toa que saia daí, portanto, um dos "pilares do vestibular". O arquiteto está morto! Chame o engenheiro! Ele fará mais barato e mais prático! Vivemos em quadrados, pelo amor de Deus! Quadrados apertadíssimos! Vocês já passaram pelo centro do Rio de Janeiro? Ou pelo Pelourinho, em Salvador? Viram como até os prédios simples eram dotados de uma beleza que nos é estranha hoje? Viram como os adornos, os detalhes, como tudo fazia do prédio não uma caixa para se morar, um abrigo, mas uma obra de arte? Não? Pois reparem!

Segundo pilar do vestibular: o advogado! Sociedade violenta, criminal, não só em sua parte física, mas principalmente em sua parte financeira. E os advogados que mais ganham são aqueles que, evidentemente, evitam que o criminoso vá para a cadeia. São das falhas do sistema jurídico e da fraqueza da Justiça não só do Brasil, mas parece-me que do mundo inteiro, que surgem esses seres. Bem pagos, se competentes, o que não falta é gente sendo presa para eles.

Isso nos leva até o maior pilar do vestibular, o já citado "ser médico". Medicina deveria ser uma profissão, acima de qualquer coisa, social. Ao invés disso, se tornou um degrau para alavancar o alto nível social. Médico é high society agora, é grand monde. Virou uma profissão elitizada, um mundinho fechado e corrupto, onde os poucos que conseguem penetrar e manter a integridade, que deveria ser inerente a um médico, são ridicularizados. Dizer que isso me revolta é pouco. Me deixa puto pra caralho! Pra caralho! A medicina, acima de qualquer outra profissão, deveria ser para todos e praticada por quem tivesse a competência para praticar!
O que nos leva ao próximo tópico, que já até foi mencionado... mas como estou cagando para a organização...


A questão de ingresso na faculdade pelo vestibular (a situação pouco criteriosa que muito apontam apenas para o ENEM) é sintoma de uma deficiência nas vagas das faculdades. Ora, se o Estado estimula a concentração profissional, que arque com as consequências! Não se pode esperar que um estímulo direto para a área de engenharia, por exemplo, seja suprido com a relativa pouca quantidade de vagas. Universidade, e ainda mais pública, deveria ser um direito do cidadão brasileiro, de todos eles. É dever do Estado fornecer educação de qualidade para todos e vou escrever mais uma vez, em itálico até, para o leitor entender a ênfase: para todos! Vivemos, como sempre vivemos, a elitização do diploma. Não preciso explicar para o leitor a importância do diploma hoje em dia, com o mercado de trabalho cada vez mais exigente (consequência da amada Revolução Tecno-Científica, produção pós-fordista, bla bla bla), nem a péssima educação de base fornecida pelo Estado, preciso? Acho que também não preciso, mas vou apontar mesmo assim, que o aluno normal de uma escola pública dificilmente conseguirá competir com o aluno fraco de uma escola privada! Competição essa derivada da falta de vagas. Não deveria haver esta competição, precisamente. Se o Estado fizesse seu papel direito, a única preocupação do aluno seria com sua própria nota. Ao aluno bastaria se mostrar competente para entrar na faculdade. Mas ao invés de suprir as necessidades de uma juventude carente de educação, estímulos positivos, reflexão e liberdade criativa, o Estado empurra com a barriga, dá benefícios para quem fizer engenharia (claro, o Brasil em fase de crescimento, quer mais é engenheiros) e decreta as cotas como a política de inclusão social definitiva. Sou a favor das cotas até certo ponto. Usá-la como tampão para as carências sociais do Brasil é o certo ponto! E é nesse contexto que vemos protestos de estudantes de classe média contra as cotas. Infelizmente, o Estado, com sua ineficiência, fomentou a falta de coesão social, por meio de uma competição apelidada carinhosamente de vestibular.


Como vê, leitor, a partir do meu ponto de vista, consegui deslocar o problema do ENEM, para o vestibular em geral. Não é a forma como é aplicada a prova, isso o ENEM faz bem (segundo educadores), mas a motivação do aluno e a falta de motivação do Estado. Estes dois fatores fazem da vida de nós, vestibulandos, um inferno. Especialmente aqueles que desejam uma profissão "não rentável" e sentem medo de ingressar nela. Não nos julgue, leitor! Não nos chame de covardes! Queremos viver bem como todos vocês! Ter uma renda estável e que dê certo conforto. Mas nos parece que isso só é possível se ingressarmos em um daqueles três pilares. É o mito que todo vestibulando enfrenta. E, infelizmente, muitos acreditam nele.


E agora? O que fazer com essa merda toda? Pra começar, temos que reestruturar nossos valores e prioridades. Primeiro, todas as profissões têm de ser reconhecidas como de igual valor. "Ah então você acha que um médico tem que ganhar o mesmo que um gari?" Sim, porra. " Mas o médico estudou dez anos e o gari não tem nem o ensino médio completo!" Pois deveria ter, todos deveriam ter ensino médio completo. E se o médico estudou dez anos é porque quis. Se você quer ser um médico pela recompensa financeira, meu querido, eu ouso lhe chamar de filho da puta. Existe sim uma paixão por certa profissão que nos faz escolher o que fazer da vida. Existem médicos apaixonados pelo que fazem, acredite se quiser. E serão esses que, apesar de serem (em um futuro utópico) trabalhadores como quaisquer outros, vão ingressar na faculdade de medicina e se formar médicos depois de dez anos de estudo.
Com a desconcentração profissional, com essa abrangência muito maior de profissões, podemos avançar a passos largos como uma sociedade mais coesa e organizada. Um mercado de trabalho mais fluido e sem aquela estagnação que gerava (gera) a queda de salário, uma sociedade menos estressada, fazendo o que gosta de fazer. O fim da competição que não seja consigo mesmo, para se superar e atingir seu objetivo... enfim... são sonhos que eu gostaria que meu filho vivesse... talvez o filho dele...

Entrevista com Paulo César Pinheiro

É uma entrevista "antiga", data de antes do lançamento do disco "O Lamento do Samba". Mas nem por isso perde em qualidade. Uma aula de música e história, vale muito a pena. E se você não conhece a obra do PCP, recomendo imensamente! Bom, fica a entrevista.





Entrevista: Paulo César Pinheiro


“Você corta um verso eu escrevo outro”

Por Luiza Nascimento, A Nova Democracia (http://www.anovademocracia.com.br/)


Lançando seu quarto livro, “Clave de sal”, Paulo César Pinheiro, presta uma homenagem ao mar e a todos aqueles em que se inspirou, em especial a Dorival Caymmi e Jorge Amado, além de seu avô, um profissional da pesca no mar. Paulo César Pinheiro, compositor de cinco gerações, temperado na luta contra a censura do gerenciamento militar e a atual – bem mais sofisticada e que impede a veiculação da música brasileira autêntica –, conta um pouco da sua trajetória honrosa, que inclui mais de 1.500 músicas compostas, 900 das quais gravadas, de literatura e arte voltadas para o povo.



AND - Você é considerado um dos letristas mais avançados do Brasil. Quando começou a compor?

Paulo César Pinheiro - Eu comecei com treze anos; já escrevia e fazia música. Mas, como todo começo, de maneira muito infantil, e sem nenhuma pretensão de ser um compositor e viver disso. Aconteceu. E, até então, eu não era nem um bom aluno de português, por exemplo. Na escola, eu chegava a matar aula de redação porque não tinha jeito para escrever.



AND - E também quase não lia?

Absolutamente nada. De repente, um estalo, que em literatura chamamos de “estalo de Vieira”, uma expressão nascida do Padre Antônio Vieira. Eu estava em férias escolares, lá por Angra dos Reis, onde passei grande parte da minha vida. Nasci em Ramos, mas nas férias eu ficava na casa do meu avô, pescador, que sempre me levava para o mar. Numa noite de lua cheia, já meio agoniado, e o lugar atuando em mim de uma maneira que eu não entendia, aquilo começou a mexer comigo. Virei um tigre na jaula. Fiquei andando para lá e para cá, até que, em um determinado momento, por instinto, peguei uma folha de papel, um lápis, e escrevi um verso. Quando terminei de escrever o verso, a agonia passou. Só consegui dormir tarde da noite. A partir daí comecei a escrever.



Quando eu voltei das férias, já queria ler, pegar tudo que via. Associei-me a uma biblioteca pública, entre o Largo da Carioca e a Cinelândia e, como morava em São Cristóvão, saía de casa cedo, pegava dois livros na biblioteca e lia os dois no mesmo dia. Na manhã seguinte, fazia o mesmo. E virei um leitor voraz. Não tinha nenhum conhecimento em literatura. Lia os filósofos gregos, os romances brasileiros — os regionais, principalmente. Virei um bom aluno e a música veio junto, também sem explicação.



AND - E quando a música virou profissão?

Bom, ainda aos 14 anos, era meu vizinho, em São Cristóvão, o João de Aquino, um violonista e compositor primo do Baden Powell. E o Baden já fazia muito sucesso no mundo. Ele tinha uma parceria sólida com o Vinicius e havia passado dois anos na França. Comecei a compor, a querer entender o processo musical. Disse para o João que a gente tinha que fazer música, e dava o exemplo do Baden. Então, ele mudou do acordeom para o violão, e nós começamos a esboçar as primeiras músicas. Muitas, eu já vinha com as idéias prontas, e ele as desenvolvia. É dessa fase, talvez a minha música mais conhecida e mais gravada: Viagem. Eu tinha 14 anos e as pessoas se assombravam um pouco com isso.



O João foi o meu primeiro parceiro, o Baden veio logo em seguida. Houve um batizado da sobrinha dele, em Olaria e o João me levou à festa para conhecê-lo. Foi a primeira noite que eu passei fora de casa. O Baden tocou naquela noite. A irmã dele pediu que cantássemos para ele. Nós cantamos e ele adorou. A partir daí ele passou a me procurar e nos tornamos amigos. Ele me buscava em casa e me levava para as noites. Meu pai achava que música era coisa de vagabundo; só me deixava sair porque era com o Baden Powell.



Comecei a conhecer a noite, os compositores, os cantores, sempre ao lado do Baden. Mas nunca tinha imaginado ser parceiro dele. Eu ia fazendo as minhas músicas com o João. Até que, aos 16 anos, o Baden me disse: “Tá na hora da gente compor alguma coisa juntos.” E aquilo me deu um certo susto, porque o Vinicius naquela época era considerado o maior compositor, o maior letrista do Brasil. Ele tinha uns 50 e poucos anos e eu 16, sendo ele, para mim, uma referência, difícil de encarar. Mas o Baden insistiu e eu topei, com um pouco de medo.



Ele me deu uma música e eu fiz a letra. De primeira, eu não achei que estivesse legal, embora ele tivesse gostado. Voltei para casa e refiz uma letra definitiva. A parceria embalou, e essa, mais tarde, foi a minha primeira música gravada, um samba chamado Lapinha. Em 1968, concorreu num Festival da Record chamado “A Primeira Bienal do Samba” e ganhou, defendida pela Elis, no auge do seu sucesso.



Talvez tenha sido um dos maiores Festivais de todos os tempos. Participaram Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, Cartola, João da Baiana, etc., abrigando gente da velhíssima guarda e os que estavam começando: o Chico Buarque, o Billy Blanco, o Elton Medeiros, eu, o Sidney Miller... E só tinha música boa. Mas só tinha craque. E eu era completamente desconhecido, além de ser o caçula.



Os festivais tomavam o horário nobre da televisão brasileira: era a “novela das oito” da Globo de hoje. Os cantores da época passaram a me procurar, pedindo música para gravar. Daí em diante todo mundo gravou meus trabalhos. Todo ano a Elis gravava uma música minha. Além dela, a Elizeth Cardoso, o MPB-4, Nana Caymmi, etc.



AND - Como era fazer música na época do gerenciamento militar?

Olha, eu participei de movimento estudantil, e naquela época os diretórios eram células fortes dentro das faculdades. Os estudantes se reuniam e discutiam o mundo, ao contrário do que ocorre hoje. Os meninos estão sem ideal, perdidos, não sabem o que fazer. A gente com 16, 17 anos estava querendo mudar o mundo. A gente se reunia, ia para rua, brigava.



A partir do momento em que comecei a gravar, já fui tendo problemas com a censura. Tive muita música censurada, discutia com o censor; um suplício porque eram muito ignorantes. Tinha uma música, também de 68, Sagarana, cuja letra eu fiz em homenagem ao Guimarães Rosa, um dos meus escritores prediletos, a ponto de chegar a dominar sua linguagem e a escrever igual a ele se eu quisesse. Fiz essa composição assim, como uma letra de música semelhante à sua literatura. Ela foi muito comentada. Partia de uma idéia inusitada, diferente, original. A censura alegou que ela havia sido escrita em linguagem cifrada, de código, e a canção foi vetada.



Fui discutir na censura com um livro do Guimarães Rosa debaixo do braço. E disse para o censor: “O nome dessa música é Sagarana, por causa desse livro”. Mas era muito difícil conversar com esses caras.



Outra minha, Cordilheiras, ficou cinco anos presa numa gaveta de censura. Eu acabava virando uma bola de ping-pong naquele prédio da polícia federal, em Brasília, de sala em sala. Quanto mais argumentava, eles, não tendo saída para os nossos contra-argumentos, mandavam-nos para outro censor. No final, caíamos no primeiro, de novo. Era um inferno, tanto a censura federal, quanto a local, na esquina da Senador Dantas com a Álvaro Alvim. Nós escrevíamos por metáforas, fazíamos o que era possível para que a música pudesse passar.



AND - Algumas músicas claramente contra o regime passavam, outras, que não tinham esse teor, eram vetadas. Por que isso?

Uma lupa se voltava sobre o que era dito pelas pessoas marcadas. Outras, não. Músicas de carnaval, aquelas rotuladas de “brega”, sempre passavam batidas, eram carimbadas e liberadas. Certa vez aconteceu um fato curioso com uma música, minha e do Maurício Tapajós, chamada Pesadelo, que virou um hino de guerra. Quando fizemos a música, mostramos para o pessoal do MPB- 4: “Não adianta nem pensar na gravação; não vai dar nem pé”. E a gente disse: “Se passar, vocês gravam?”. Um pouco descrentes, eles responderam sim.



Fui contratado pela Odeon e fiz um disco em 72. Comecei a entender o funcionamento das gravadoras, e via como elas mandavam as músicas para a censura. Num determinado momento, a censura nem aceitava mais a letra escrita, queriam a gravação, porque na gravação poderia conter uma segunda intenção. Então eu disse: “Olha, eu vou fazer uma malandragem. Vou mandar essa música no meio de um bolo que a Odeon sempre manda.” Era um período em que havia muito material para mandar. Tinha um disco do Agnaldo Timóteo, com aquelas canções derramadas, e outras coisas românticas. Pedi a um funcionário da casa que enfiasse Pesadelo no meio desses discos. Assim, a música veio liberada. E o MPB-4 a gravou.



Mesmo depois de liberada, as pessoas tinham medo de gravar, mas o MPB-4 sempre foi valente. Apesar disso, toda vez que eles cantavam Pesadelo, ninguém entendia como tinha passado pela censura. As emissoras de rádio começaram a não tocá-la.



AND - E qual a música desse período que mais te marcou?

Pesadelo, sem dúvida. Contaram que durante a Guerrilha do Araguaia, na selva, eles cantavam Pesadelo. Dizem ter sido a música que mais ajudou, nessa fase de luta armada, a todos eles, a mais forte politicamente que a gente fez, e a única direta, sem subterfúgios, sem metáforas, que passou.



AND - Quem mais lhe influenciou na literatura e na música?

Numa canção nova que ainda não foi gravada, chamada Guardados, de parceria com o Sérgio Santos, eu cito os nomes dos meus poetas de cabeceira: Drummond, Vinicius, Cecília, Cabral, Pessoa e Bandeira, que eu lia muito. Mas muitos romancistas também me influenciaram literariamente: Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Agripa Vasconcelos, João Felício dos Santos, que era um romancista histórico, autor de Zumbi dos Palmares e Chica da Silva.



Musicalmente não há nada de político. Influenciei-me pelo que ouvi desde menino e pelo que ouvi depois, adulto, quando fui olhar para história, para evolução musical, ou seja, pelos autores que no começo do século passado moldaram a alma brasileira. Noel, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Ary Barroso, Pixinguinha, João da Baiana. E os chorões, que são os mais antigos de todos.



As pessoas falam muito do samba como se ele fosse o começo da história musical popular do Brasil, e não é. A primeira música gravada com o nome de samba foi Pelo telefone, do Donga. Pela primeira vez saiu no disco Samba de Donga. Isso, no começo do século passado. Os chorões são do começo do século retrasado.



Agora mesmo saiu uma série, pela Acari Records, a gravadora da minha esposa em parceria com Maurício Carrilho. O projeto, da Petrobrás, se chama “Os princípios do choro”. Eles abordaram um período que vai de 1840 a 1880, ou seja, nem chegaram no século XX, nem chegaram no Pixinguinha, e fizeram 15 CDs. Trata-se um registro da história do choro, desde o primeiro chorão. Todos os músicos são mestiços, não apenas negros ou brancos. O primeiro de que se tem notícia, um sujeito chamado Henrique Alves Mesquita, era mestiço e foi estudar música na Europa, a mando do imperador. Lá, namorou a mulher de um rei europeu e foi preso. Ficou dois anos preso na Europa — a história brasileira já começa a esculhambar! — e aí voltou. Só que a corte não quis mais saber dele, e ele foi tocar na rua. Nessa coleção de 40 anos, há a história de cada um desses caras. E quando o samba começou a ser feito eram eles que acompanhavam os sambistas, faziam as harmonias e tocavam.



AND - Em que a mestiçagem contribuiu para a evolução da música brasileira?

A mestiçagem brasileira fez com que a música desse certo. A música negra pura é fraca, é primitiva, mas ritmicamente forte. A música do branco ritmicamente é fraca e melodicamente forte. Quando misturou, deu nisso: uma música diferente, com a identidade brasileira, que está se perdendo de novo graças ao massacre de manifestações estrangeiras, principalmente as “americanas”.



O Brasil criou uma “raça” nova. E eu sou um produto disso. Minha avó é uma índia de uma tribo guarani de Bracuí, misturada com inglês. Meu pai é caboclo, paraibano, mistura de índio com negro. Meu avô não tinha sobrenome. Tem gente que diz: “Ah, o samba é africano”. Não é, não... O samba é brasileiro, tem o semba africano, que nem é parecido. O africano não tem idéia do que seja samba.



O que há no Brasil é um sistema político infeliz que massacra a cultura de seu país. O ministro da Cultura, representando o Brasil como ministro, toca reagge lá fora! Quando ele pensa em fazer alguma coisa com as comunidades empobrecidas usa formas que não são brasileiras. Como um compositor vira ministro da cultura de seu país e canta música de outro país? Porque não canta a dele, que é bem melhor? É só mercado, grana! Ele não está preocupado com a cultura popular. Por que não toca Procissão, Domingo no parque, lá fora? Ele possui um cargo e está representando o país dele, ou seja, não tinha nem que estar cantando e dançando. Mas já que está, dance e cante a coisa de seu país. Não precisa cantar a música do Jimmy Cliff que é da Jamaica, ou então vai ser ministro na Jamaica.



Hoje, a música “americana” dominou o Brasil. Quando a música brasileira dos anos 60 em diante tomou conta do mundo, eles se assustaram, por que um país de Terceiro Mundo não pode ter a música mais bonita do mundo. E daí abafaram essas manifestações, já que as gravadoras são todas transnacionais. Começaram, assim, a jogar o lixo deles para cá, que já poluiu mais de duas gerações.



AND - E a mais recente produção brasileira?

Muita gente faz música brasileira, só que está todo mundo nos becos, de onde é difícil sair. Primeiro, o sistema é corrupto, as emissoras de rádio, que fazem parte desse sistema, são corruptas, e as transnacionais compram todos os horários que as rádios têm para a música. Eles pagam para tocar o produto deles e para não tocar o nosso. Os discos independentes raramente são tocados nas rádios. Hoje, o que se ouve nessas emissoras é música feita no Brasil, mas não é a música brasileira.



A partir do golpe militar para cá houve a interrupção do processo evolutivo musical do Brasil, porque o ‘americano’ tomou conta de tudo. Essa interrupção, que data do final da década de 70, fez com que uma geração depois da minha não conseguisse botar o pescoço para fora.



A princípio, surgiram o Pixinguinha, o Dorival, o Noel Rosa, o Nelson Cavaquinho, o Cartola. Posteriormente, o Baden, o Tom, o Carlos Lyra e, logo depois, a minha geração, Dori, Edu Lobo, Francis Hime, Milton Nascimento, um monte. Essa geração seguinte a minha foi achatada, não pôde mais mostrar a cara; foi esmagada pelo massacre estrangeiro. No lugar que hoje poderia estar o samba mais bonito do mundo, está um rap que não é brasileiro — que não é nem música, aliás, é uma forma de verso falado com um ritmo chato embaixo. Aquilo que a gente dizia, a revolução que a gente trazia nas letras da nossa época, tinha como base músicas muito bem feitas. Hoje, a reclamação é feita com a música do país contra o qual se reclama. Ou seja, está tudo errado.



AND - E você acredita que isso possa mudar?

Acredito nos que estão agora com 17, 18 anos — a nossa geração quando começou tinha essa idade — e que vão mexer nisso. Existem nesses guetos e becos pessoas pondo mais o pescoço para fora, tendo mais condições porque o processo industrial se deteriorou. Hoje, qualquer pessoa faz o seu próprio disco em casa, não precisa mais de gravadora. Esses meninos mais novos, do beco, estão retomando esse processo. Duas gerações depois, não vão mais precisar dessas gravadoras para coisa alguma.



AND - As gravadoras tendem a desaparecer?

Vão desaparecer. Em função desse processo tecnológico que muda a cada momento, daqui há uns cinco anos as gravadoras não vão mais existir. Elas, primeiro, fecharam seus estúdios. Músicos, compositores e artistas construíram seus próprios estúdios. As gravadoras alugam estúdios para gravar. Agora com Internet, com o MP3, as pessoas vão fazer o disco e vender em casa. A Acari vende muito mais disco pela Internet. As gravadoras já não têm função. E ficam reclamando da pirataria, mas foram eles que inventaram a pirataria.



Há oito anos eu via um programa de TV, desses que passam nas tardes de domingo, e o Amado Baptista, aquele cantor de Belém, estava com um disco na mão reclamando que o disco dele não tinha saído ainda e que ele tinha comprado o disco num camelô. A capa do disco, no caso, não estava nem pronta. Se a capa não estava pronta e o disco também não, como é que ele comprou o disco no camelô? Quem pirateou? As gravadoras. Então foram elas que começaram o processo e agora o feitiço virou contra o feiticeiro. Agora, elas estão sendo pirateadas mesmo. Além disso, governos anteriores isentaram as gravadoras do ICMS, para que elas investissem na cultura brasileira, em discos não industriais. Com esse dinheiro, elas, ao invés de investirem na cultura, pagaram o jabá, e foi assim que começou a história.



AND - E a que se deve essa mentalidade?

Deve-se ao processo da colonização mesmo. O Brasil foi um país colonizado por diversas nações. Por fim, os ‘americanos’ tomaram conta de vez. A Barra da Tijuca é um grande exemplo disso. Foi o último bairro do Rio de Janeiro a crescer e, em menos de 10 anos, cresceu como nenhum outro. Mas nas ruas você vê até a Estátua da Liberdade. E tudo tem nome em inglês. É um padrão de comportamento único. Em qualquer lugar que você vá todos são iguais. E a juventude, sem dúvida, é a mais atingida, está em formação. O mesmo acontece com a religião, que sempre pega o mais fraco, o ignorante, o inculto, aquele que está precisando de um milagre na vida. É por isso que esses templos se alastraram pelo Brasil inteiro e esses pastores estão ricos. Porque se aproveitam da camada mais pobre da população, a que está perdida.



O imperialista crava a cultura dele no meio da sua, esmaga a sua e a cospe fora. Todos os meninos, hoje, falam inglês. Hoje se escuta muito mais inglês do que português. As gírias, criação do povo e fazem parte da mutação da língua, são em inglês.



A ‘globalização’ padronizou a cultura, a arte, o ser humano. O ‘americano’ tomou conta não só do Brasil ou da África, mas de todo mundo. São os xerifes que impõem as suas regras, seus costumes, para o mundo inteiro. Existe uma série de trabalhos que precisam ser feitos no Brasil: a democratização dos meios de comunicação, a regionalização das coisas... O cara do sertão do Cariri, do Ceará, canta Michael Jackson. É aquela história que diz em um samba do Maurício Tapajós com letra do Aldir Blanc: “O Brazil não conhece o Brasil”. Poderia ser diferente, não fossem os péssimos líderes e governantes.



AND - Está surgindo algo no Brasil que te atrai?

Adianta citar? Você conhece Pedro Amorim? Roque Ferreira? Não adianta, o repórter não vai nem escrever isso, não interessa, não chama atenção de ninguém. Agora, essas pessoas não estão na ‘mídia’. Por exemplo: Estruturou-se em três anos uma gravadora chamada Biscoito Fino que faz exatamente isso: grava pessoas que ninguém conhece ou que as grandes gravadoras já mandaram embora, que foram descartadas. Além dela, tem a Acari, a Kuarup, a Lua; são vários selos. Hoje existem mais selos independentes do que gravadoras. E 90% da música de qualidade são produzidas pelos selos independentes. Gravadora é para Zezé de Camargo e Luciano, ou seja, produto para vender e no ano seguinte ninguém sabe o que aconteceu; é descartável, não é história, não é arte. Não é música, é entretenimento. Arte é atemporal e entretenimento é temporal. Por isso, os que formaram a nossa identidade estão aí, até hoje.



AND - E a geração de músicos que fizeram sucesso nos anos 80?

É uma geração muito fraca, culturalmente falando. É a geração que lê gibi, não lê livros. A maioria dos grupos de rock — que eles chamam de rock brasileiro, mas isso não existe — tem nomes tirados de gibi: Barão Vermelho, Jota Quest... Ou seja, eles só leram gibi e jornal, não podem fazer uma bela poesia, mesmo que tenham talento. E se tem talento, geralmente não partem para esse caminho. No que diz respeito à poesia e à música, o sujeito pode ser analfabeto, como é o caso do Patativa do Assaré, João do Vale ou Cartola. Alguns tiveram oportunidade de estudar, mas mal fizeram o primário. Esses garotos da década de 80, no entanto, foram criados sob o massacre. E fizeram suas músicas, que não eram brasileiras, de acordo com as que eles ouviam: o rock. E a literatura deles, na minha opinião, é literatura de redação de ginásio, do cara que lê gibi.



AND - Afinal, o que é gênero musical no Brasil?

Hoje, os contratos de edição das músicas são muito engraçados, porque você tem que assiná-los e dizer em que gênero a sua música se encaixa. Só que isso é feito segundo uma lista previamente elaborada pelos conglomerados editoriais. Tem coisas absurdas! Você pega a crítica musical de jornal e os especialistas dizem: MPB, samba, pagode... É tudo a mesma coisa. MPB é música popular brasileira. Então o baião está incluído nisso, o samba está incluído. O pagode não é gênero musical, o pagode é uma festa, é sinônimo de festa de samba. Daí, diante dessa superficialidade estrangeira, quando você tem um conhecimento profundo a respeito de alguma coisa, dizem que você é radical. Mas radical é aquele que foi na raiz e aprendeu, sabe dialogar a respeito do que aprendeu, diferente desse pessoal. Então, as pessoas te rotulam de radical, como se isso fosse um xingamento. Essa ignorância passa adiante todo dia, essas formas musicais que muitos, hoje, chamam de gênero e que não são. O samba e a MPB não são duas coisas diferentes.



Estou fazendo o julgamento de seleção do prêmio Tim, o antigo prêmio Sharp. E está lá: categoria MPB, categoria pagode, categoria samba. É uma enxurrada de coisas ruins. E sempre, alguma coisa boa, é de um selo independente. Os melhores instrumentais são de selos independentes, as revelações também.



AND - Em que outros projetos você está envolvido?

Estou lançando pela Griphos (um selo da editora Forense) o Clave de sal, o meu quarto livro publicado. Eu o dedico ao Jorge Amado, ao Dorival Caymmi e a meu avô que é pescador. O livro só tem poemas sobre o mar.



Tenho um disco novo. Na primeira semana de dezembro já vai estar nas lojas. Chama-se O lamento do samba, com 14 músicas minhas, sem parceria. Pela primeira vez, duas gravadoras se juntaram para fazer um projeto, e duas gravadoras independentes: a Acari e a Biscoito Fino. Fizeram um selo chamado Quelé, em homenagem a Clementina de Jesus. Eu estou inaugurando esse selo, mas já existem 12 selecionados para dar prosseguimento ao projeto. Roque Ferreira será o segundo. Há também o Pedro Amorim, o Maurício Carrilho, a Amélia Rabello, ou seja, pessoas das novas gerações que vão poder botar o pescoço para fora através do Quelé.



Quando se fala em samba, fala-se em Zeca Pagodinho, no Arlindo Cruz, no Sombrinha, mas tem um outro samba aí que ninguém fala porque não está no ar. E as gravadoras geralmente não querem gravar, já que não se trata daquele samba de refrão fácil que se ouve duas vezes e você sai cantando na terceira. É outro samba, um samba que vem mais dessa linha evolutiva que foi interrompida. E o samba do Baden, do Ary Barroso, é um outro samba que ficou para trás. E muitos chamam de “samba de raiz”, que é pejorativo. Por desconhecimento, muitas vezes quando alguém regrava, por exemplo, um samba do Noel Rosa, com uma vestimenta mais do som padronizado, da moda, as pessoas engoliam sem saber que aquilo é de 1930. Mas se gravarem do jeito que a música é, dizem que é velho. É muito mais uma visão de forma.



AND - Por que o samba anda tão alegre ultimamente?

O pagode, por exemplo, era uma reunião onde se tocava samba, uma festa de samba. E pagode de repente virou um gênero musical. E daí misturaram aquelas baladinhas sem-vergonha da jovem guarda com o samba e deu isso que está aí. Eu fiz um samba recentemente com Pedro Amorim chamado A voz de Nagô, que o Naná Vasconcelos gravou. E ele diz o seguinte: “O samba é uma canção de guerra / não foi só feito para brincar”. Ou seja, o samba também é uma reunião de brincadeira, mas nasceu diferente. Ele nasceu como um canto de guerra do negro massacrado pela escravidão. Isso quer dizer que o samba perdeu o que ele tinha, a parte mais bela dele. Esses pagodes que tocam no rádio são muito alegres para o meu gosto. O lamento que o samba trouxe lá de trás, que provém do sofrimento de quem o criou se perdeu, já não é nada mais. É por isso que meu disco se chama O lamento do samba, o que tem dois sentidos: são sambas de lamento, e é o samba se lamentando de ter perdido o seu lamento. Eu continuo: “O samba é uma canção de guerra / e não foi só feito pra brincar / pra ser feliz ainda não dá / enquanto um negro, um só negro, um só chorar”. Ou seja, enquanto houver miséria e esse sofrimento da maioria negra no gueto, comendo lixo, ninguém pode ficar na TV rebolando e brincando com a forma séria que construiu a identidade musical do povo brasileiro. Samba é uma coisa muito séria.



E quando eu digo lamento, eu não digo tristeza, não. O samba de lamento das décadas anteriores, de 50 para trás, eram músicas de carnaval. Agora, olha os temas: “Passava noite vinha dia / o sangue do negro corria, dia a dia / De lamento em lamento / de agonia em agonia / ele pedia o fim da tirania”. Isso é samba de carnaval. Você admite isso num baile de carnaval hoje? Mas isso era samba de carnaval. E a marca do negro, do lamento, está lá. Escutar um samba de enredo de carnaval é como se tivesse escutado todos, é tudo a mesma coisa. Aquele belo samba que o Silas de Oliveira fazia, com cuidado, não se faz mais, porque o importante, fazem crer, não é o povo aprender, refletir, é fazer o povo se “animar”.



AND - E sobre as parcerias com gerações de compositores?

Peguei cinco gerações e me sinto um privilegiado. Comecei com uma geração acima da minha, com o Baden, doze anos mais velho do que eu. Aí também estavam o Tom, o Carlos Lyra, o Menescal. Tornei-me parceiro desses três. E parceiro também dos músicos da minha geração: Dori Caymmi, Francis Hime, Edu Lobo. Mas ainda era o caçula deles; todos já completaram 60 anos e eu 54. E a geração seguinte, de onde saíram o Aldir Blanc, o João Bosco, também é mais velha que eu. E através dos mais velhos, da geração do Baden, eu conheci os ainda mais velhos: o Radamés Gnatalli, o Pixinguinha, o Mirabeau, o Ribamar, e me tornei parceiro deles. O Pixinguinha é centenário e foi meu parceiro. Daí, veio a geração do Maurício Carrilho, do Pedrinho Amorim, do Sérgio Santos, os parceiros com os quais eu faço músicas. Já alcancei uma quinta geração: a do filho do Baden, do qual sou padrinho. Tem 24 anos e é meu parceiro. Então, passei por cinco gerações.



Está para ser feito um disco com a cantora e atriz Soraya Ravelli só de músicas minhas. E um disco para mostrar esse leque por onde eu já passei, só com composições inéditas. Vai pegar desde o Pixinguinha até o Felipe. Um de 24 anos outro de cento e tal. Vai se chamar O arco do tempo, se não me engano. É daí que vem esse meu conhecimento da cultura popular. O Pixinguinha nasceu em 1897. Para chegar a ser parceiro de um Pixinguinha ou de um Radamés Gnatalli você tem que entrar de cabeça, ir lá nos primórdios para conhecer a sua história, e não ficar uma superficialidade. O Prêmio Shell começou com o Pixinguinha e com o Villa-Lobos e eu sou o 23° a ganhar esse prêmio. Estou ganhando pelo conjunto da obra, que são cerca de 900 músicas gravadas, e feitas mais de 1.500. Tenho mais de 600 inéditas, na gaveta, saindo aos poucos. Quando eu morrer vocês terão que me aturar muito tempo! (risos) Mas a arte não tem pressa. A minha contribuição para esse processo é fazer, não é nem falar muito, para que as pessoas entendam da onde é que nós viemos.



Está sendo editado também um livro de uma jornalista, a Conceição Campos, sobre a minha obra, uma tese de mestrado, de 2001. Já saíram dois livros a meu respeito, ou seja, já existe uma história. E, para isso, a dedicação foi total, eu me entreguei completamente.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

PUTZ!

Preciso fazer um conto de genocídio, pra tirar o atraso... a quantos contos não mato ninguém?

Rancor



                                   


O velho odiava aquele rapaz que falava na televisão, odiava sua pose, odiava seu discurso, odiava sua liderança revolucionária. "Palhaçada", praguejava o velho, "não vai mudar nada nesse país de merda, nunca mudou e nunca mudará". O velho via as pessoas apoiando o rapaz. Pessoas do Brasil inteiro davam palavras de apoio, e o velho odiava isso. Odiava tudo que envolvia o garoto. Ao mesmo tempo nutria certa simpatia por aquela figura. Uma odiosa simpatia nostálgica e melancólica. O velho entendia por que essa mistura de sentimentos. Entendia por que não acreditava no garoto e em sua possibilidade de mudar o país, mais ainda, entendia por que torcia para que ele não o conseguisse, torcia para que tudo desse errado. O garoto, esse que discursava para o velho e o Brasil inteiro pela televisão fazia aquilo que ele nunca conseguiu fazer. O garoto era quem ele gostaria de ter sido e agora, enquanto olhava para as suas mãos enrugadas, as veias roxas brotando por debaixo das manchas escuras em sua frágil e seca pele, agora era tarde. Preaguejou mais um pouco o garoto e desligou a televisão. Não suportaria nem mais um segundo daquilo. Não suportaria ver o Brasil mudar sem sua participação. Não suportaria ser um velho, um peso pra sociedade, sem nenhuma função prática, não suportaria morrer sem ter servido a propósito algum. O velho pegou do empoeirado armário de mogno sua velha Winchester 1901, herdada de seu pai. Guardou a arma para quando houvesse uma revolução - acabar com a ameaça ianque usando sua própria arma. Nunca usou, no entanto, a não ser para praticar no jardim. "Revolução armada", sibilou o velho, debochada e melancolicamente, "como éramos tolos". Colocou a munição na arma, girou o gatilho, ajoelhou-se e apontou o cano da arma para o pescoço. Acabar com tudo... era isso... acabar com sua inutilidade, acabar com tudo. O velho tremia. Seus joelhos doíam. Seus batimentos aceleravam. Suas veias, já salientes, agora tentavam escapar do cárcere corporal. Adquirira um tom pálido, mais pálido que o normal. Batia os dentes. Chorava. Pela janela, um som veio. Música. Uma multidão passava correndo, pulando, dançando e berrando a plenos pulmões "caminhando e cantando e seguindo a CANÇÃO. SOMOS TODOS IGUAIS (...)" O velho ouvia a canção de Geraldo Vandré, a mesma que ele cantava, e chorava mais, silenciosa, mas copiosamente. Foi só quando a multidão já tinha se afastado e não mais podia se ouvir "VEM VAMOS EMBORA! QUE ESperar não é saber. quem sabe..." que o velho se levantou. Desengatilhou e colocou a arma na bancada. Limpou com a manga da camisa abarrotada as lágrimas. Depois de inspirar profundamente, o velho soltou o ar e saiu porta afora.

domingo, 9 de outubro de 2011

Sobre o aborto... polêmica é uma merda

Introdução:

Fui à missa com meu avô e ouvi o sermão do padre sobre o absurdo que era a legalização do aborto. Saindo de lá, recebi um pequeno panfleto sobre o tema. "ABORTO NÃO!", dizia o panfleto bem grande. aqui vai um pedaço dele para você, querido leitor:


Como talvez você possa perceber, o feto é retratado como um bebê e expressões como "triturado e aspirado", "cortado aos pedaços e arrancado", são usadas para causar horror e ojeriza. O padre, durante seu sermão, nos estimulou a ir em busca de imagens relacionadas ao procedimento do aborto. Não é nada bonito, eu lhe asseguro. Não vou forçá-lo a encarar tais imagens, se quiser, fique a vontade para buscar no google ou algo parecido. Do ponto de vista do livre arbitrio (uma questão tão delicada para a igreja, me parece) da mulher em relação ao seu corpo, o padre me diz que não é válido, uma vez que ela "está tirando a vida de outro ser humano". Muito bem, eu compreendo o ponto de vista da igreja... mais ou menos. A questão é que toda a argumentação dos que se dizem "Pró-Vida" é moral. Claro, não esperaria coisa diferente. E não espero que se crie um ponto de vista puramente racional, pelo contrário, a ética e a moral são fundamentais para o ser humano e seu desenvolvimento em sociedade. Bom, o que eu vou tentar fazer agora é relativizar a questão do aborto. Se existe realmente alguém que lê essa joça, adoraria que deixassem suas opiniões, se concordam ou discordam do que vou falar a seguir e, enfim... você já entendeu, possível leitor.

Mas antes:

Fiquei me mordendo e me coçando (como quem me conhece sabe que eu faço quando quero falar alguma coisa e não posso) enquanto ouvia o sermão do tal padre. Atraí olhares, foi extremamente desconfortável. Decidi que falaria com ele depois da missa, perguntaria se ele achava a morte pior que a tortura, se ele considerava o anencéfalo um ser vivo, etc... Não deu... em parte pelo meu bom senso que me impediu de fazer estas perguntas na frente do meu avô e de mais umas vinte ou trinta pessoas, e em parte por minha timidez. Bom... ainda pretendo conversar com ele. Vou esta semana mesmo marcar uma hora (é assim que funciona, né?). O que mais me incomodou foi a forma completamente parcial como o padre apresentou o tema. "É um assassinato", afirmou ele, veemente. Você pode achar que estou pedindo demais ao esperar de um representante da igreja um pouco de flexibilidade, mas com a influência que este possui, com o alcance de sua palavra, não é absolutamente absurdo algum esperar dele uma vontade de conscientização e não tomação de partido.

Conscientização, tenho odiado essa palavra nos últimos tempos, me parece tão vaga e vazia hoje, mas não há melhor pilar para minha argumentação, infelizmente. Vamos nos lembrar o que é conscientização, iluminação, o ganho de conhecimento, o afastamento da ignorância. Talvez a palavra que eu queira realmente usar seja "elucidação". Vou explicar.

Uma mania que têm os temas mais polêmicos é a bipolaridade, a radicalização dos lados. Ou é sim ,ou é não. Perai! As coisas não são assim! Estes extremismos acabam por tornar a discursão acerca do tema burra e infrutífera, porque os argumentos possuem padrões diametralmente opostos e quem é a favor, é a favor e pronto assim como quem é contra, é contra e pronto. Não existe diálogo, parece uma guerra. O objetivo se torna ganhar o máximo de adeptos quanto for possível e não chegar a uma síntese interessante para todos. É frustrante isso. O tempo passa e as coisas não mudam (como poderiam?), fica esta eterna batalha moralista. Com a elucidação, talvez possamos ter um diálogo mais saudável.

Enfim, sobre a questão do aborto:

Pois bem, estávamos falando do aborto, devo logo alertá-lo, leitor, que sou a favor da legalização, não por uma questão moral ou de direitos da mulher (sim, eu acredito na liberdade sobre o próprio corpo, acredito que a mulher deveria ter o direito de escolher se deseja ou não ficar com o filho, mas não se trata somente disto), é uma questão de fatos. Mais de um milhão de abortos clandestinos são feitos em nosso país todo ano (fonte: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2007/05/30/295957896.asp ), matando milhares e milhares de mulheres por falta de salubridade, higiene e competência médica. A grande maioria dessas mulheres são da classe mais baixa, são mulheres que sabem que não podem criar um filho, que sabem que se derem a luz a uma criança, vai significar a morte para ambos. Mulheres que precisam do aborto e isso não é uma questão moral, mas de sobrevivência. Você, infeliz e confortável leitor, diria que a gravidez foi consequência de suas ações e por isso deve ter o filho. Leitor, querido leitor, o senhor coloca uma criança como punição, isso não é certo. Até mesmo quando foi escolha da mulher não usar o preservativo, a incapacidade de criar um filho e a falta de disponibilidade de casas de adoção decentes (onde, de fato, crianças são adotadas) são razões mais que plausíveis para evitar que o bebê nasça, que ele cresça num ambiente rodeado por drogas, violência, morte, fome, miséria...
Não se engane, leitor, também sou "pró-vida", olhando agora pela minha varanda, sentado confortável  no sofá, me sinto feliz de estar vivo. O vento úmido que traz a chuva bate nas minhas pernas e faz as árvores balançarem, não gostaria de privar ninguém da possibilidade de sentir isso. No entanto, eu entendo que não são todas as pessoas que o conseguem. Nascer para morrer ou para ser escravo da dor não é vida que se preze, leitor, nisso eu também acredito. Nossos amigos "pró-vida" querem trancafiar a mãe que não deseja isto para o filho. Isso quando ela sobrevive! Nossos "pró-vida" acabam se tornando cúmplices da quarta maior causa da morte materna no Brasil e da agravação do sofrimento e morte infantil.

Entenda, leitor, que sou a favor da descriminalização do aborto, mas não de sua liberalização. Não é tornar o aborto um método anticoncepcional, muito menos uma política estatal. Por favor, isto seria por demais neomalthusiano (eca!). Me parece que muitos dos que estão "do meu lado" nesse debate têm uma infeliz visão do feto como um câncer, um tumor a ser removido. Queridos, um feto não é, nem da estratosfera, um câncer e o aborto tem que ser considerado com muito cuidado e carinho. Nenhuma mãe gostaria de matar seu filho, e creio que toda mulher gostaria de ser mãe um dia, não é opcional, é biológico, está no instinto feminino. O aborto é um imenso sofrimento para a mulher e eu reconheço isto. Não é algo que vai ser esquecido, não é um simples procedimento cirúrgico, é a privação da possibilidade de ser mãe. De criar uma vida. É terrível, mas muitas vezes necessário. Não cabe a nós julgar, no entanto. Cabe à mulher, e o aborto tem que ser uma alternativa porque, bem ou mal, quer você concorde ou não, quer sua moral condene isso, quer ela anseie por isso (tem cada um...), é uma escolha do casal, mas principalmente da mãe. Não tratem isso com leviandade, padres e neomalthusianos, é uma puta escolha que vai influenciar o resto da vida dessa mulher. Para que essa escolha seja feita, é necessário que se dê as informações e ferramentas certas para que ela entenda o que vai acontecer e como vai acontecer. É preciso compreender o procedimento, tanto do ponto de vista médico, quanto do ponto de vista psicológico.

O aborto não é uma questão a ser discutida, é uma questão a ser esclarecida. A verdade é que nenhum padre jamais terá que fazer tal dolorosa escolha, assim como a maioria das pessoas que debatem o caso. É preciso que alguém estenda as mãos para as mulheres que de fato estão nesta encruzilhada, e que este alguém não pretenda enfiar um cabide no seu útero. Com a legalização do aborto (não sua liberação), a questão pode ser discutida de forma objetiva e sem extremismos ou preconceitos, de forma muito mais justa e lúcida. De forma que as mulheres que um dia passariam por isso, possam entender e escolher o que for melhor para elas e seus filhos.

Considerações Finais:

Ter um filho, senhores, é motivo de alegria, não de angústia e desespero, e qualquer um que ache que uma criança merece ser tratada como fonte de tristeza, ser odiada por estar viva, é tão amoral quanto aqueles que acham que uma mãe não sofre com a perda do filho.

No fim, a polêmica em volta da questão do aborto induzido não deveria existir, já que se trata de uma escolha puramente da mulher e, com todo o respeito, não temos nada que meter o bedelho. A mulher que não aborta hoje não abortará amanhã só porque foi legalizado, assim como tem mulher que aborta hoje, independente da criminalização do ato. Estas não precisam de um sermão de um padre conservador condeando-a nem de um discurso de um progressista liberal incentivando-a, elas precisam de informação e amparo. E é isto que deveria ser discutido.