terça-feira, 27 de agosto de 2013

Se essa rua, se essa rua fosse minha... eu mandava, eu mandava ladrilhar...



   Chorava protegida pelo anonimato, refazendo novamente a cena que aquele palco da miséria humana e da solidão conhecia tão bem. As pessoas olhavam-na com o julgamento de um padre e a compaixão de uma irmã mais velha, que se reconhecia em sua dor, tão familiar. É contraditório, eu sei, mas assim as pessoas são. Não ousaram interrompê-la em momento algum.

   A rua era apenas sua e de sua dor.

   Essa, por sinal, já fora de muitos e muitas em tantos momentos diversos e que por vezes se coincidiam. Era democrática, quase bíblica, dividia-se em quantos fossem necessários os gritos de solidão e os soluços de desespero sem nunca perder aquele mesmo vigor de proteção, do anonimato, da solidariedade julgadora das pessoas que por ela passavam. Principalmente, do respeito ao isolamento das lágrimas, dos olhares desviados, das calçadas atravessadas. A senhora dos olhos vermelhos, era ela! Para onde iam todos os marmanjos expulsos de casa, as meninas desiludidas e os rapazes em ilusão, do frenesi apaixonado da adolescência à complacente aceitação da morte. Senhora dos tímidos, dos quietos, mas que recebia de braços abertos os escandalosos e incautos. A rua, lar da boemia, das bebedeiras, dos andares melancólicos e dos lamentos, os sofridos assovios que tiram o ar não do pulmão, mas do coração pesado e artrítico de quem sofre.




sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Eduardo

- E como você se sente?
- Como eu me sinto? Como assim, "como eu me sinto"? Que porra de pergunta é essa? Como eu me sinto em relação a quê?
- Calma, Eduardo, foi só uma pergunta. Agora por favor responda: como você se sente em relação a si mesmo?
Um momento de silêncio marcou a efervescência emocional na cabeça dele. O silêncio, quebrado apenas pelas fortes e duras batidas no seu coração, como algum brutamonte arrombando uma porta de compensado. E então parou.
- Eu me sinto como uma casa quebrada. - disse, com o semblante calmo - Uma daquelas casas onde passamos nossa infância, sabe? A mãe cozinhando, o pai se arrumando pro trabalho, essa merda toda. Mas nem a mãe nem o pai estão lá. Eles estão mortos. E a casa está vazia, abandonada. E no lugar das teias de aranha... nem as aranhas quiseram saber da porra da casa. No lugar das teias estão os cacos. A casa está em cacos. É uma casa destruída, sem conserto, toda a infância que se passou lá e toda a vida que a rondava... toda a merda que se passou, mas também os momentos de felicidade, aqueles raros momentos de felicidade... aquele brinquedo que você ganhou de natal, aquela dança que seus pais dançaram, essa merda toda já era. A-ca-bou. Fim. E a casa, quebrada. É assim que me sinto, doutor, como uma casa quebrada, destruída. Me sinto sem rumo, sem razão de ser.
- E isso depois que a Bia morreu?
- É óbvio, porra, que foi depois que a Bia morreu, caralho. Porquê porra seria?
- Não foi culpa sua, Edu...
- FODA-SE!

terça-feira, 13 de agosto de 2013

uma postagem bem ruim

"Eu gostaria de estar lá em cima" - repetia o garoto, olhando o céu estrela - "Eu gostaria de estar lá em cima".
Sabia que por mais que repetisse, nada aconteceria, mas continuava com seu mantra, insistente. Via-se subindo, chegando perto das estrelas que nunca cresciam, continuavam pontos de luz que segurava e brincava na palma de sua mão. Sabia da realidade titânica e gasosa dos astros, mas não ligava. Gostaria de estar lá em cima, com elas. Embaixo era tão... "seco" foi como descreveu... Queria se molhar... Lá em cima poderia se molhar... a liberdade da água, se movimentar, flutuar, beber do próprio ambiente. Gostaria de estar lá, lá em cima.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Negação





Sua expressão compenetrada, anfíbia, mergulhando em secas águas, gélidas de outros planetas e nos trazendo (pelos dedos de artista) à terra a luz. formas transbordantes nos envolvem em ternos abraços, tenros enlaces. trêmulos suspiros, tensos olhares... posso apenas imaginar. "triste despedida da tosca memória"... é o que me diria caso me trouxesse algo. fique você com seus olhares, seus cabelos, suas verdades. fico com minha tosca memória.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Saudades de Itapuã





   A Bahia é, por assim dizer, uma lembrança herdada. Nunca conheci as coisas maravilhosas que me foram passadas pelo meu pai. Nunca sentei à margem da Lagoa de Itapuã, à luz de velas apenas, com dezenas de outras famílias, para ouvir Dorival. Nunca vivi Salvador criança, corri e brinquei por suas ruas nem nada disso... Mas lembro de ter lacrimejado com o pesar no rosto do meu pai quando fomos ao Abaeté na nossa última visita à Salvador. Ficou um tempo parado, sem falar nada, até deixar escapar um "como tá diferente", ou algo assim... 
   Pesa. 
   É extremamente pesado o fardo que carrega quem viveu em tempos melhores, tempos mais bonitos. Pesa e rola em formato de lágrima ou estrangula em forma de agonia. A tristeza é das coisas mais profundas, mais ainda é a tristeza pelas coisas belas, aquelas perdidas e nunca reencontradas, aquelas da memória. 
   Sinto saudades da Bahia como se fosse meu pai, sinto saudades de Itapuã, do Abaeté e de Caymmi...