quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O Aborto

E foi assim, rápido como as palavras que foram ditas,
Rápido e indolor como a bala que abre a ferida,
Não-dor efêmera, morfina da alma, heroína dos fracos,
Ferida, gradualmente, mostrando seu efeito retardado.

E morreu hoje quem nunca nasceu,
Foi abortado da vida ainda embrião,
Não deveria sentir nada, me disseram,
Mas eu o vi, se contorcendo esparramado no chão,
Chutando e lutando contra a dor,
Em meio ao sangue e ao que ainda era amor.

Como é estranho ainda lembrar
Do que nunca houve, nem nunca haverá.
E parece impossível chorar ou sorrir,
Só fica um vazio, vácuo sem ar.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O tipo de famoso que eu gostaria de ser

- OH MEU DEUS! TIRA UMA FOTO COMIGO?!?!?!
- Porque?
- PORQUE VOCÊ É OSCAR EMMYCANNES!!!
- E daí, porra?
- DAÍ QUE EU SOU SEU FÃ!!!!!
- Foda-se, eu nem te conheço cara, tá maluco? Acha que eu vou deixar você tirar uma foto minha? Acha que sou seu amigo? Eu to com cara de quem gosta de você? Hã?? Até onde eu sei você pode ser um psicopata doente que fica me seguindo como hobby. Aliás, você deve ser isso mesmo. Puta cara de maluco você tem.
- Mas... mas...
- Mas porra nenhuma. Vai fazer amigos e procurar o que fazer com sua vida de merda.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

O Psiquiatra

Repousei o copo de conhaque no apoio e fiquei observando os carros passando, a sinfonia de buzinas, as brigas de casais nos apartamentos vizinhos, o choro de seus filhos, e dos filhos de outros casais. O tráfego aéreo, o soar de sirenes, polícia, bombeiros, ambulância. Uma música muito alta, uma banda começando, desafinada; uma festa eletrônica. O vento, gemendo de dor por ter que se espremer tanto para passar por entre tantos prédios, as árvores balançando, suas folhas dançando graciosamente a canção de agonia do vento, meus dedos estalando ao flexionar o punho, minha respiração, meu coração batendo, fraca e então violentamente;

Não posso esquecer, por mais que queira não posso, não posso me distanciar, não posso me envolver. Tomo um gole de conhaque e mais um... e mais um. A bebida arde como fogo na garganta, e me faz esquecer do frio gélido do inverno de Nova Iorque, me faz esquecer do suéter pinicando que me incomodava, me faz esquecer do meu nariz recentemente quebrado, que doía, me faz esquecer da minha família e da saudade que sinto de casa, me faz esquecer de respirar. Mas ainda não me esqueço dos problemas, mesmo que não meus, não consigo esquecer-me deles. Fiquei mais o que parecia uma eternidade esperando o calor passar, e quando passou,quando lembrei de todo o resto, estes pareciam insignificantes. O que aconteceu a seguir eu já vi muitas vezes nos meus pacientes, primeiro veio a apatia e, apesar de saber o que viria, eu me recusei a acreditar. Acho que um médico nunca acha que tem o que ele próprio trata... Não faria sentido um oncologista morrer de câncer ou um cardiologista falecer devido a um ataque do coração. Mas a vida não faz sentido e, ironia ou não, eu tinha agora o que eu tratava... Fiquei minutos, talvez horas encarando o nada, interrompendo o ato somente com um ocasional gole de conhaque. Minha mente estava enfim vazia... foi quando veio o inevitável. Uma súbita e crescente fúria me subiu pela garganta, eu gritei o mais forte que pude, joguei o copo de conhaque o mais longe possível, sem pensar em quem poderia acertar, e soquei repetidas vezes a bancada de madeira nobre. Minhas mãos já sangravam quando eu parei, me apoiei na bancada lascada e respirei... então veio o irmão da fúria, o desespero; me joguei no chão e, em posição fetal, gritava enquanto levava as mãos a cabeça, como que se pudesse tirar a força os pensamentos. Gritei e apertei a cabeça até minha garganta não aguentar mais e meus dedo adormecerem. Lentamente me levantei, novamente apático, fui para a bancada,olhei para baixo. A altura nunca me pareceu tão sedutora, subi na bancada e me balancei para frente e para trás. “Vou voar”, pensei, “vou voar ou vou morrer tentando!” Os sons haviam sumido,o vento havia cessado, meu nariz ainda doía, mas eu o ignorava, a bancada desapareceu sob meus pés. Abri a boca para falar minhas ultimas palavras. “Que seja trágico”... São últimas palavras tão boas quanto quaisquer outras... com um sorriso, pronunciei:

- Let it be tragic.

Os sons voltaram... o vento gelado fazia meus pelos eriçarem e minha espinha gelar, caí para trás e não sabia dizer se era meu nariz ou minha bunda que doía mais, abri a boca novamente.

- What... – me interrompi prontamente. Porque eu estava falando em inglês? Não queria falar em inglês de jeito nenhum...se fosse pra morrer, que morresse falando minha própria língua. – FUCK! FUCK!! FUCK!!! –gritei repetidamente, MERDA! MERDA! MERDA! Como pude eu ter esquecido minha própria língua? Nunca me senti tão descaracterizado, tão “desalmado”, se eu não sabia a língua com que fui criado, a língua com que falei e escutei minhas primeiras palavras, se eu não podia reproduzir a língua que me fez quem sou, então eu não sou eu, sou outra pessoa... ou pessoa nenhuma.

Afinal, quem porra eu sou?

Entrei para fugir do frio e olhei em volta, meu apartamento de dez milhões me parecia vazio, meus quadros famosos com suas molduras de ouro pareciam tão sem significado... meus móveis caros eram feios... e eu não conhecia o estranho do outro lado do espelho, aquele com cara de assustado e com um olhar caído. Senti repulsa só de estar ali, procurei minha chave onde sempre deixo (se é que sou eu quem a deixa lá mesmo), estava lá. Passei a chave na fechadura com cuidado, tendo certeza de que não a encaixaria e que meu apartamento me prenderia para sempre dentro dele e de seu assustador vazio. Mas a tranca se cedeu e saí apressado pela porta e dela ao elevador sem me incomodar em fechá-la. Apertei o botão e esperei, trinta segundos,eu contei. Ao entrar, eu hesitei; o elevador convidativo, com as paredes acolchoadas e a suave musica ao fundo nunca me pareceu tanto uma solitária, um quarto de manicômio como tantos que já vi ao longo da carreira... as portas já se fechavam quando meti o pé para fora. As portas do elevador amassaram meu sapato de couro italiano e se abriram. Cambaleei para fora e procurei as escadas, estavam no fim do corredor, à direita. Não pensei que estava descendo vinte e dois lances de escada, apenas desci, cambaleando, mancando, sim, mas desci.

Chegando ao andar térreo, disparei para fora das escadas e para fora do prédio, somente emitindo um grunhido em resposta a pergunta do porteiro “What’s going on, Dr. Soares?”. Soares, Soares, era este meu nome, então? Meu nome? Ou nome do dono do apartamente? Aquele que falava português e sabia bem quem era? Eu era essa pessoa? O porteiro me abriu a porta externa, talvez perdendo o interesse, provavelmente devia achar que era mais um desses milionários, com suas crises existenciais que só o dinheiro pode comprar. Na verdade, talvez fosse exatamente isso, mas creio que isso pouco importa no dado momento.


O ar do inverno nova-iorquino bateu no meu rosto e corpo como uma faca gélida a me estripar, diminui o ritmo, mas continuei em movimento; senti meus músculos, atrofiados pela falta de uso, se tornarem enrijecidos e doloridos. As pontas dos dedos eu já não sentia, meus pés, antes reclamando da exaustão, agora permaneciam em movimento sem dar um pio. Me entorpecia cada vez mais a cada segundo, talvez pelo frio, talvez pelo desespero, talvez pela ânsia de me entorpecer, de não sentir... creio que isso ficará a critério da interpretação pessoal de cada um... para sermos diplomáticos, diremos que foi uma combinação de todos estes fatores.


Minha visão, cada vez mais embaçada não viu a luz crescente vindo em minha direção, nem minha audição, cada vez mais surda, não ouviu a buzina insistente, nem minhas pernas ousaram parar de correr. Creio que foi só no último instante antes de eu ser atropelado que dei por mim que morreria. Não revi minha vida inteira, como dizem, nem vi luz branca alguma a não ser a amarela do farol do carro, não pensei em poemas ou epitáfios, não pensei na minha família no Brasil nem me arrependi de nada da minha vida. Tampouco fiquei com a mente vazia. Não, apenas uma palavra me veio à cabeça e, creio, não poderia ter escolhido palavra melhor. Gosto de pensar, leitor, que me sobrou tempo para pronunciar a palavra com todas as letras antes de morrer, mas não posso lhe dar certeza... Procure entender que uma lembrança assim pode estar muito mais associada à esperança e ao desejo que ao fato real. No entanto, em nome da justiça poética, da minha justiça poética, pelo menos, consideremos isto um fato.

- Merda. – eu sussurrei antes de ter a bacia esmagada, as pernas quebradas, sofrer um traumatismo craniano e quebrar quatro costelas, uma delas perfurando meu coração.

Assim eu morri. Com “merda” nos meus lábios. Morri um brasileiro. Morri Laézio da Cunha Soares.