sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Rafaela

A névoa artificial, a música pop-eletrônica, os olhares ansiosos por seu corpo, ansiosos por um erro seu... conhecia bem tudo aquilo, conhecia a correria da troca de roupas, conhecia os esporros dos estilistas... Já não era sua primeira passarela... Lembrava-se de sua infância; como sua mãe, que nunca pôde ser modelo porque engravidara, contava do glamour e da beleza da profissão. As duas montavam passarelas de lençóis por onde a pequena Rafaela desfilava com suas roupas e arranjos improvisados. Tudo era uma festa, onde uma cobrinha de pelúcia virava uma echarpe de luxo. Mamãe aplaudia de pé a desenvoltura da filha, não se privando de consertar quaisquer erros que cometesse ou de ensinar os modos adequados de se andar. Rafaela sorriria se pudesse, se não estivesse sendo vigiada por algumas centenas de olhos prontos para ver o menor deslize, o menor traço que fugisse da natureza morta de um manequim. Rafaela entendia sua função, era ser objeto de desejo, mas não menos objeto. Era seduzir com a apatia da mosca morta que representava. Mas não foi sempre assim... Enquanto as luzes da fama pareciam longe, um sonho a conquistar, Rafaela via na profissão de modelo tudo aquilo que desejava para sua vida. Via na passarela seu habitat, o lugar onde se sentiria mais a vontade e poderia melhor se expressar. Foi aos treze anos que assinou seu primeiro contrato. Também foi aos treze que conheceu Geraldo Bergmann, seu agente. Ainda naquele ano fez seus primeiros desfiles e sua mãe, sempre orgulhosa, sentava-se sempre na primeira fileira. Como hoje... os passos, os ossos quase expostos a ranger, os dentes a cerrar, os batimentos, tudo ecoava em sua mente mais alto que a música do desfile. Lembra-se de como era fácil ser modelo aos treze anos, ainda possuía a promessa do glamour... aquele glamour ofuscante que tanto desejara e por tanto tempo... agora que o tinha... percebia que não era tão maravilhoso assim... Entre privações, reclusões e assédios, Rafaela desejava o que não podia: mudar de vida. Fora criada nessa vida e agora não haveria escape. Lembrava-se de quando começou a ver-se presa... foi aos quinze anos... também foi quando perdeu a virgindade. Foi Geraldo Bergmann, seu agente, quem a tirou. Rafaela não queria, muito menos com ele, aquele homem feio, em seus cinquenta e tantos anos, que fedia a colonia e cigarro. Não...Não queria... mas não teve escolha. Bergmann a ameaçou tirar-lhe sua carreira, seu sonho, tudo o que tinha... Perdeu, assim, a inocência, e foi carregada para dentro do fazer o que for preciso pela carreira. Emagreceu, parou de comer decentemente, vomitou algumas vezes por semana, entrou no mundo das drogas pesadas para suportar - e porque não havia outra opção. Nunca teve chance de amar, de viver... Percebia agora, na maturidade dos seus trinta anos, o quanto deixara para trás pelo glamour... O glamour que só desejava longe agora... Olhou pelo canto do olho para sua mãe, orgulhosa como sempre ao ver a filha desfilando. Os olhos encheram-se de lágrimas, um misto de dor, raiva e pena. Segurou. Não poderia chorar ali, agora não. Deveria fazer como fazia normalmente, deveria esperar acabar o desfile, deveria chorar sozinha no hotel, com a carreira de cocaína pronta para ser cheirada. Deveria, mas não conseguiu. Desabou na passarela e caiu em prantos. As lágrimas tinham um sabor acridoce... Estava tudo acabado agora.