terça-feira, 26 de junho de 2012

Poesia e Revolução (Parte 2)

(Este texto é uma continuação de Poesia e Revolução Parte 1 (http://naoentrenesselink.blogspot.com.br/2012/05/como-eu-vejo-revolucao.html) e todas as citações, exceto a de Salvador Dalí, vêm do livro A Hora dos Assassinos, do Henry Miller. Não preciso dizer que foi um livro que gostei bastante)






"Um mundo totalmente novo, terrível e assustador, está diante de nós. Um dia acordaremos e nos depararemos com uma cena que ultrapassa qualquer possibilidade de compreensão. Os poetas e os profetas vêm anunciando esse mundo novo há várias gerações, mas sempre nos recusamos a lhes dar crédito. Nós, os das estrelas fixas, rejeitamos a mensagem dos esquadrinhadores do céu. Foram por nós considerados mortos, fantasmas fugitivos, sobreviventes de catástrofes perdidas em passado longínquo."

No século XVIII, na Europa, começa um fenômeno que vai, doravante, ser determinante na história humana. Estou falando da Revolução Industrial e suas maravilhosas e terríveis consequências; o advento da indústria e dos avanços da técnica trouxeram consigo aquela semente ideológica que quebraria os vínculos com o sistema político, econômico e, principalmente, simbólico. Poesia. A igualdade perante a lei, a liberdade para crer, para trocar, suas ânsias como homens eram respondidas e, assim, um conjunto de ideias toca um conjunto de homens e faz uma revolução. A colocada do homem no centro, a princípio uma ferramenta coletivizadora, iconoclasta e filosófica, logo assumiu uma posição de idealismo técnico e veneração da ciência. Positivismo, o grande mal do século. 

Minha professora de metodologia certa vez disse-nos "O papel da ciência é quebrar o encantamento.", pois bem, partindo desta frase vemos como é grande a prepotência do homem da ciência. Simplesmente desqualificar todo conhecimento fora de seu estreito campo de visão, classificando-o como "encantamento"... Agindo como se a vida não precisasse desse "encantamento", que o ser humano é mais completo com o suposto conhecimento científico - este, o único que pode ser considerado conhecimento real.

Vimos a Europa do século XIX inflar o ego da máquina e da indústria, mas principalmente do conhecimento científico cartesiano e "pé-no-chão". Vimos o positivismo crescer e vimos, claro, o "desencanto" que foi consequência disto. Diz Miller sobre o período:

"Um século de inquietação, de materialismo, e de 'progresso', como se diz. Um Purgatório em todos os sentidos, e os escritores que brilharam nesse período refletem isso de maneira sinistra."

Vemos a angústia, o desespero estampados na arte, esta que sofria com o "desencanto" que vinha da ciência. Loucos, boêmios, imorais, vemos refletidos nos românticos, nos simbolistas as dolorosas investidas da ciência e conhecemos, por fim, o resultado da fusão arte x ciência... naturalismo, realismo, parnasianismo... podres, podres referências a arte. Não tocam a não ser na glote, provocando um vômito de termos e conceitos fracos, mas considerados verdadeiros... determinismo, por exemplo, prova grande da falibilidade da ciência. Enquanto isso, Rimbaud, Van Gogh, Nietszche e outros são exilados socialmente por exprimir  poesia que, mais tarde, seria reconhecida. Seria? Henry Miller continua:

"Quanta revolta, quanta desilusão, quanta ânsia! Nada mais que crises, prostrações, alucinações e visões. Estremecem os alicerces da política, da moral, da economia e da arte. O ar está cheio de advertências e profecias sobre a derrocada que se aproxima - e que se concretiza no século XX! Já duas guerras mundiais e a promessa de outras antes de o século acabar. Chegamos ao fundo? Ainda não. A crise moral do século XIX simplesmente cedeu lugar à falência espiritual do século XX."

Com o crescimento do racionalismo científico, outro fenômeno surge na Europa, agora liberal e capitalista: o individualismo. O homem não estava mais no centro, era o indivíduo que estava. Uma sociedade que já era profundamente egocêntrica, num sentido mais étnico, se torna egocêntrica num sentido mais individualista, e, com a exaltação do ego, o alter se perde em insignificância. Isso resulta em pelo menos três consequências: 

O cientista se cria em superioridade;

O artista renega seu público;

O público renega a poesia;

Para o bom funcionamento da arte e da poesia é preciso uma relação íntima entre o poeta e o leitor, isso se torna inviável quando um renega o outro. E enquanto a ciência nos fornece técnica e ferramentas para a nossa utilidade, a poesia não passará de palavras e imagens vagas.

"O assobio da bomba tem sentido para nós, mas os delírios do poeta parecem disparates."

A soberania da ciência sobre a arte... da objetividade sobre a subjetividade. Dalí comenta sobre a racionalidade: 

"Todos sabem que a inteligência nos faz desembocar apenas nas névoas do ceticismo, que ela tem por efeito principal reduzir-nos a coeficientes de uma incerteza gastronômica e super-gelatinosa, proustiana e malsã."

Reduzamo-nos então a esta matemática biológica sem espírito e sem alma. Se a subjetividade perde seu valor na sociedade, o que nos resta? O que nos difere das ferramentas e máquinas que criamos? O ser humano urra por poesia como o corpo urra por sangue, como o sangue urra por um coração que o bombeie e como o coração urra por vida. 

Pois na virada do século XX os poetas e artistas perceberam a condenação da arte a algo científico, enclausurado e objetivo. Fez-se então a ruptura epistemológica, rompeu-se com aquele antigo estilo escroto burguês que os levou a tantas guerras e atrocidades. Mas o ego era grande. E, se houve a renovação da poesia, esta ficou também enclausurada entre os poetas. Miller comenta sobre:

"O culto da arte não preenche sua finalidade quando só existe para meia dúzia de homens e mulheres privilegiados. Então não é mais arte, mas a linguagem cifrada de uma sociedade secreta para a propagação de uma individualidade descabida. A arte é algo que incita as paixões humanas, que dá visão, lucidez, coragem e fé. Que artista da palavra, nesses últimos anos, incitou o mundo como Hitler? Que poema abalou, recentemente, como a bomba atômica?"

Repito: O egocentrismo dos novos poetas os afastaram das multidões, assim como o egocentrismo do indivíduo o afastou da poesia. A poesia, então, vai perdendo o seu poder e o poeta sua função.

"O poeta hoje está obrigado a desistir de sua vocação porque já demonstrou seu desespero, já reconheceu a própria incapacidade de comunicar-se. Ser poeta era antigamente a vocação mais sublime; hoje é a mais fútil. E isso não porque o mundo seja imune às súplicas do poeta, mas porque ele mesmo não acredita mais no caráter divino de sua missão."

E a sociedade, sem poesia, se estagna. Globalização... o cientificismo é exportado, vendido e imposto ao redor do mundo, a descrença e a objetividade se agravam e a imunidade a poesia se torna mais evidente... Se discutem com armas e não com palavras. Se elogia com produtos e não com versos. Se ama com o bolso e não com o coração.

Individualismo.

Que estagna.

Que massifica.

Tive algum problema para conseguir sintetizar a ideia de um individualismo exacerbado que, ao mesmo tempo, tire toda a individualidade. Se trata de um individualismo inexpressivo e comandado. Se trata de pensar em si mesmo, mas fazendo o mesmo que todos, o isolar-se para dentro de si, sem a vantagem reflexiva que isso poderia gerar. Como assim? Faço aquilo que for do meu interesse, mas o meu interesse é ditado por terceiros. Me vendem sonhos, desejos, medos e soluções. Me vendem a ilusão de não precisar de ninguém e assim permaneço fechado em mim, fechado para os outros e principalmente para a poesia, me sirvo de escudo contra qualquer coisa que tente me tocar, me mudar, sou orgulhoso por que acredito ser diferente, mas não sou. Sou mais um e a falsa diferença é também produto. A comercialização do ser, do ser igual e também do ser diferente - que, logo vemos, são dois de um só. O consumo do sonho inalcançável, o auto-ódio, a baixa autoestima, a depressão... são todos consequências e necessidades do sistema individualista que vivemos hoje. Que não individualiza, pelo contrário, segrega quem tenta demonstrar identidade própria. 

E que mata a poesia.

E que mata o poeta.

E que estagna a sociedade, pois esta aguarda, com carência, a poesia que a libertará.

Continuamos, assim, um processo que começou pelo século XVIII e se intensificou no século XIX, refletindo na angústia dos poetas que o viveram. Continuamos já com a decadência de uma agora moribunda poesia, que não toca nem quer tocar e que, por consequência, não merece ser chamada assim.

"Não chamo de poeta quem apenas faz versos, com ou sem rima. Para mim, poeta é aquele homem capaz de alterar profundamente o mundo. Se houver um poeta desses vivendo entre nós, que se proclame. Que levante a voz! Mas terá que ser uma voz que possa abafar o estrondo da bomba. E que use uma linguagem que derreta os corações humanos, que faça borbulhar o sangue."

Está ainda para surgir um poeta como foi Hitler, Marx ou qualquer outro homem próximo das multidões, independente da espada moral que possa pender sobre ele. Estamos condenados ao cárcere da imobilidade enquanto não entendermos algo bem simples, que Miller, em seu livro, observa e eu cito:

"Não há nada de misterioso em torno das energias do átomo; é nos corações humanos que reside o mistério."

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