domingo, 25 de março de 2012

O Malandro não Existe

Presenciei duas vezes praticamente consecutivas o uso do termo "jeitinho brasileiro", uma para justificar a inutilidade de programas sociais numa discussão e outra na aula de Introdução à Ciência Política, quando a professora perguntou o que significava o termo (na verdade eu nem lembro o contexto em que foi feita a pergunta). Frustrado com a concepção geral, não só do brasileiro, mas de uma lógica determinista de construção da identidade, além, claro, da completa e aparentemente facultativa (visto que estou cursando Ciências Sociais na UFRJ!!) ignorância da realidade do verdadeiro "trabalhador" (não poderia existir palavra melhor para descrever o sujeito) brasileiro, eu resolvi fazer este texto.

"É o malandro", alguém respondeu à professora.

Não existe malandro; Tracemos a origem do conceito (que, por ser conceito, já subentende-se que se trata de abstração, uma criação do ser humano para categorizar qualquer coisa. No caso, pessoas, que é o pior dos piores tipos de categorização) até o início do século XX, quando certas figuras icônicas caminhavam pelo Rio de Janeiro, ainda capital. Para uma melhor caracterização dessas figuras, peguemos a música de Wilson Batista, "Lenço no Pescoço"

Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio

Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão

E eles tocam
E você canta
E eu não dou


Pois bem. Você já viu alguém que corresponda a essas características? A "malandragem" da Lapa e alguns outros bairros do Rio foi um fenômeno momentâneo e bem pontual. Quando Chico Buarque monta sua música, Homenagem ao Malandro, já vemos um cenário diferente.

Eu fui fazer um samba em homenagem
à nata da malandragem, que conheço de outros carnavais.
Eu fui à Lapa e perdi a viagem,
que aquela tal malandragem não existe mais.
Agora já não é normal, o que dá de malandro
regular profissional, malandro com o aparato de malandro oficial,
malandro candidato a malandro federal,
malandro com retrato na coluna social;
malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal.
Mas o malandro para valer, não espalha,
aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal.
Dizem as más línguas que ele até trabalha,
Mora lá longe chacoalha, no trem da central 


Isso foi escrito no final da década de 70, para a peça do mesmo, A Ópera do Malandro. Acho que fica óbvio a diferenciação do malandro descrito em 1930 e o de 1970-80. Vou abordar apenas o principal: primeiro se trata de um indivíduo de baixa classe social, que utiliza o que pode ou não pode ser chamado de "o jeitinho brasileiro" para "se virar" na vida. O segundo é um burocrata, alta classe social, que utiliza-se de seu poder para explorar a sociedade em toda a sua canalhice, enquanto o que era o malandro, o arrastador de tamancos da Lapa, o que tinha um lenço no pescoço, virou trabalhador. Podemos ver uma evidência desse processo de transformação na música O Bonde São Januário, também do Wilson Batista:



Quem trabalha

É quem tem razão

Eu digo
E não tenho medo
De errar



Quem trabalha...



O Bonde São Januário

Leva mais um operário
Sou eu
Que vou trabalhar



O Bonde São Januário...



Antigamente

Eu não tinha juízo
Mas hoje
Eu penso melhor
No futuro
Graças a Deus
Sou feliz
Vivo muito bem
A boemia
Não dá camisa
A ninguém
Passe bem! 



Que mudança radical, não? Esta foi escrita em 1940. Porque teria Wilson Batista mudado tão radicalmente sua opinião quanto a malandragem? Pois bem, ele não mudou. A ditadura de Getúlio Vargas, com o DIP, alterou a letra da música ("O bonde de São Januário/leva mais um sócio otário/só eu não vou trabalhar") e assim se declara aberta uma temporada de caça à malandragem.

Hoje, o malandro é apenas um símbolo, geralmente de samba (também marginalizado na época) e gafieiras. Mas sua estadia na sociedade brasileira foi o suficiente para cristalizar um sentimento de que o brasileiro é malandro de forma inata. Sempre buscando um jeito mais fácil para resolver um problema, sempre querendo se dar bem. Este é o "jeitinho". Berro a plenos pulmões o absurdo de tal concepção. Berro pois, como bem apontou Chico Buarque, o malandro de verdade, aquele que fazia parte de uma classe mais baixa na sociedade, de fato pega o trem e vai trabalhar. Feliz ou não com isso, o povo brasileiro é um povo que trabalha e, se o leitor me permite o uso de tal expressão, dá um duro do caralho, é explorado até a alma e extremamente mal remunerado. Esta é a grande maioria da população, a grande maioria que é pobre e que, pela minha experiência não muito vasta, jura pela honestidade e solidariedade de uma forma que apenas aqueles que são humildes e só tem a própria palavra e o próprio orgulho podem fazer. 



Falar de jeitinho brasileiro é colocar milhões de pessoas em um saco podre e chamá-las de vagabundas e aproveitadoras, é se submeter a um discurso preconceituoso, arcaico, e, sim, imperialista, que denigre não só a população do Brasil, como ao próprio indivíduo brasileiro que não nasceu com isso, muito pelo contrário, batalha todo dia para poder sobreviver em um país em que a desigualdade social perdeu já a voz de tão absurdamente gritante. Jeitinho brasileiro? E o jeitinho americano, de sempre conseguir explodir algum país para ganhar dinheiro em cima da destruição alheia e de forçar sua visão ideológica de jardim de infância ao resto do mundo? E o jeitinho árabe-israelense de sempre querer lucrar em cima de uma mercadoria ou de querer pagar menos? Posso passar milhões de linhas escrevendo absurdos para mostrar o quão é errado se estereotipar um povo por uma "atitude negativa", tanto do ponto de vista moral quanto do técnico. 


Tenho vergonha de nossos antropólogos e sociólogos que admitem a existência de tal conceito, que reduz e divide o povo. E que, como todos os conceitos, é abstrato e manufaturado. 


Esse ainda tem o privilégio de ser babaca.

2 comentários:

  1. Tá com uns troços marcados e eu não consigo tirar, quando consegui, voltaram em maior número e em outras frases. tomarei isso como um presságio de uma assombração, ente, encosto ou que seja e deixarei o texto quieto. Mas por favor, possível, porém improvável leitor físico, comente! Como você pode ver, este blog literalmente só possui leitores fantasmas.

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  2. Um povo sempre precisou de figuras místicas/folclóricas, não vejo o tal malandro como algo que fuja à regra histórica. Se traçarmos uma linha temporal da transformação dos "malandros" ao passar das eras e dos tapas na cara, e dos pesos nos lombos, e dos sóis tostando as peles, o que se aproxima a esse ser histórico-popular hoje? Os "néms"? Nem sei se é assim que se escreve e deposito aqui meu total desprezo para essa nomeclatura. Não tenho contato com isso onde moro, mas creio que não exista de certo o verdadeiro "nem" assim como duvido da existência do verdadeiro "malandro". Aspirações podem até existir, mas não passam disso. São seres que procuram afirmação e aceitação de seu meio por intermédio de um grupo ou aceitação de um grupo pro seu meio, esculpem uma identidade bamba a partir de um modelo esboçado de malandragem e da "Lei de Gérson", mas basta mais alguns tapas nas caras, pesos nos lombos e sóis tostando vossas peles que desmoronam-se desse castelo ilusório de cartas. Muito bom texto! Muito bom. Há muito tempo pensava nisso, ouvindo a música do Chico, mas acho que nunca pensei em deitá-lo em palavras e argumentos, parabéns! Pra você ver, parei de ler um texto enorme e cansativo de Roman Jakobson pra ler o seu e foi uma leitura bem mais prazerosa e fluente, porém não menos importante.

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