terça-feira, 25 de outubro de 2011

Rancor



                                   


O velho odiava aquele rapaz que falava na televisão, odiava sua pose, odiava seu discurso, odiava sua liderança revolucionária. "Palhaçada", praguejava o velho, "não vai mudar nada nesse país de merda, nunca mudou e nunca mudará". O velho via as pessoas apoiando o rapaz. Pessoas do Brasil inteiro davam palavras de apoio, e o velho odiava isso. Odiava tudo que envolvia o garoto. Ao mesmo tempo nutria certa simpatia por aquela figura. Uma odiosa simpatia nostálgica e melancólica. O velho entendia por que essa mistura de sentimentos. Entendia por que não acreditava no garoto e em sua possibilidade de mudar o país, mais ainda, entendia por que torcia para que ele não o conseguisse, torcia para que tudo desse errado. O garoto, esse que discursava para o velho e o Brasil inteiro pela televisão fazia aquilo que ele nunca conseguiu fazer. O garoto era quem ele gostaria de ter sido e agora, enquanto olhava para as suas mãos enrugadas, as veias roxas brotando por debaixo das manchas escuras em sua frágil e seca pele, agora era tarde. Preaguejou mais um pouco o garoto e desligou a televisão. Não suportaria nem mais um segundo daquilo. Não suportaria ver o Brasil mudar sem sua participação. Não suportaria ser um velho, um peso pra sociedade, sem nenhuma função prática, não suportaria morrer sem ter servido a propósito algum. O velho pegou do empoeirado armário de mogno sua velha Winchester 1901, herdada de seu pai. Guardou a arma para quando houvesse uma revolução - acabar com a ameaça ianque usando sua própria arma. Nunca usou, no entanto, a não ser para praticar no jardim. "Revolução armada", sibilou o velho, debochada e melancolicamente, "como éramos tolos". Colocou a munição na arma, girou o gatilho, ajoelhou-se e apontou o cano da arma para o pescoço. Acabar com tudo... era isso... acabar com sua inutilidade, acabar com tudo. O velho tremia. Seus joelhos doíam. Seus batimentos aceleravam. Suas veias, já salientes, agora tentavam escapar do cárcere corporal. Adquirira um tom pálido, mais pálido que o normal. Batia os dentes. Chorava. Pela janela, um som veio. Música. Uma multidão passava correndo, pulando, dançando e berrando a plenos pulmões "caminhando e cantando e seguindo a CANÇÃO. SOMOS TODOS IGUAIS (...)" O velho ouvia a canção de Geraldo Vandré, a mesma que ele cantava, e chorava mais, silenciosa, mas copiosamente. Foi só quando a multidão já tinha se afastado e não mais podia se ouvir "VEM VAMOS EMBORA! QUE ESperar não é saber. quem sabe..." que o velho se levantou. Desengatilhou e colocou a arma na bancada. Limpou com a manga da camisa abarrotada as lágrimas. Depois de inspirar profundamente, o velho soltou o ar e saiu porta afora.

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