terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Escrevera uma peça uma vez...

Se estava vazio, não era porque lhe faltasse alguma coisa mas, e o zelador sabia, porque lhe possibilitava tudo. Um palco vazio, dizia para si mesmo nos raros momentos em que se permitia filosofar, é como... e pensava um pouco... já usara "um livro", "uma fita de vídeo", "um botão de flor", entre outros, mas constantemente trocava a última metáfora por outra que fosse mais apropriada. Com frequência usava metáforas que já haviam sido trocadas, mas que lhe pareciam melhores no momento. Mas desta vez usou uma nova, uma que lhe pareceu mais apropriada do que qualquer outra que já tivesse usado... é como a aurora, e sorriu, cada dia é diferente, mas você sabe que vai acontecer e sabe que será lindo. Sim, esta estava boa... vinte e cinco anos... já varria o piso de madeira trabalhada daquele teatro havia vinte e cinco anos... quanta serpentina, purpurina, suor, papel, papelão, plásticos de todas as cores, panos, tecidos, e toda sorte de apetrecho teria varrido... recolhido... abrigado... sua casa estava cheia de quinquilharias de teatro. A velha reclamava, mas não podia convencer o zelador do contrário... era sua paixão e ela sabia disso, às vezes com admiração, às vezes com certo ciúme... Conhecera Shakespeare, Suassuna, Goethe, Chico Buarque, Nelson Rodrigues e tantos, tantos outros... o quanto rira, chorara, refletira nas sombras escuras dos bastidores reservados aos zeladores, aquele canto especial reservado, no escuro, entre as cortinas ou ao lado da saída... vira musicais, tragédias e comédias, recitais, óperas e performances... vira a vida sendo encenada e sendo vivida no palco e nas plateias. Lembrava-se do jovem tolo que entrara por aquelas portas aceitando o emprego como bico, suportando meses de berraria e cantoria enquanto esperava as luzes se apagarem para que começasse a limpar e organizar... Lembrava-se destes meses que não seriam recuperados, das peças que perdera a chance de assistir, de ouvir, de sentir, de viver... Recordava-se com carinho a Carmen que o seduzira, o Hamlet que o intrigara, mas, acima de tudo, o Fausto que o convidara para o mundo cênico. Entendia cada atuação como a encarnação viva do personagem, cada gesto como se parte de um contexto... Como Fausto, quis saber, mas sua fome se resumia ao mundo das artes cênicas, das personificações dos personagens, estes que não podem ter saído da cabeça de alguém, precisavam ter vida própria... Era uma aurora, sim senhor... e era linda a cada dia que passava, mesmo nos mais nublados... Entendera o palco vazia como um mundo a ser povoado, um contexto a ser preenchido, um espaço de infinitas possibilidades sempre disposto a voltar, após cada experimentação, a seu estado virgem e imaculado de esboço criativo infinito. E esta tarefa cabia ao zelador, trazer de volta a impecabilidade do palco, seu espírito de criação que não poderia ser outra coisa que não divino. Orgulhava-se do cargo... O protetor e cuidador da aurora... Parecia uma boa metáfora, de fato... De qualquer forma, não teria chance de substituí-la... O zelador morreu na manhã seguinte, devido a complicações no pulmão... Sua metáfora se tornara o epitáfio de seu túmulo, que está lá até hoje, no cemitério da cidade...

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