sábado, 7 de julho de 2012

Mergulho

    - Como foi o trabalho?
    - Bom.
    - Ah... que bom... - voltaram a comer, o silêncio cortante sendo perfurado pelos arranhados dos talheres nos pratos.
    Carne, feijão, arroz. No dia anterior comeram as sobras do macarrão de segunda-feira. Amanhã, provavelmente comeriam as sobras de hoje. Carne, feijão, arroz. Carne, feijão e arroz suficientes para o resto da semana.
    Terminaram, Maria recolheu os pratos e levou-os para a pia. João foi para a janela e acendeu um cigarro, o som fulminante do trânsito invadindo o esmagador silêncio do apartamento. João tragou, Maria enxaguou, João observou as cinzas caírem, silenciosas e incandescentes, e se desfazerem no vento noturno da avenida central, Maria mordeu a unha, o esmalte recente já corroído, enquanto observava a máquina de lavar - seu presente de aniversário do ano retrasado - funcionar, João esmagou o cigarro no parapeito, Maria hesitou.
    - Você lembra daquela viagem que fizemos? A que fomos pro Maranhão? - perguntou e, após não receber resposta, continuou - Eu tava pensando em fazer algo assim de novo. Faz tanto tempo que a gente não viaja junto, achei que podia ser bacana. Dei uma olhada nuns destinos na internet e vi uns...
    - Maria... - interrompeu-a João - você acha mesmo que a gente tem grana pra isso? Você viu a conta de luz desse mês?  A de telefone? Tá foda, porra! E você fica pensando em viagem? Deixa viagem pra quem pode pagar.
    Maria se calou. Voltou sua atenção novamente para a máquina de lavar e suas unhas. João encheu até a metade um copo com uísque barato e foi ver o jogo. Maria foi para o pequeno lavabo no canto da área e vomitou. As mãos no ventre virgem, ventre maldito que nunca tinha dado vida, agora revirava-se como se para machucá-la. Vomitou mais e mais, toda carne, o feijão e o arroz, toda a coca-cola, todo o esmalte que roera, todo o uísque que bebia quando seu marido não estava em casa. Tudo foi se acumulando em uma espécie de sopa vertiginosa de vergonha, medo, impotência e depressão, nojenta, amarga, biliar. A cor amarelo-esverdeado que ficou o pequeno vaso do lavabo e o cheiro acre do vômito eram, por si só, o suficiente para fazê-la vomitar mais. Quando não havia mais nada, Maria rapidamente fez o mesmo procedimento de sempre: agarrou o aromatizante de ar e deu descarga. Não podia deixar o marido vê-la neste estado, não sabia bem porque. Era uma mistura de medo irracional e orgulho.
    João, que rapidamente se embriagava toda noite antes de dormir, já estava em seu segundo copo de uísque. Não punha gelo, não apreciava, só botava no copo e virava goela abaixo, o líquido viscoso e quente ardendo seu esôfago numa espécie de auto-flagelo masoquista. Odiava aquela dor, mas se impunha toda noite e acabava por sentir certo prazer nela. Era seu ritual, uísque barato, isto é. Pouco importava a televisão ligada, não estava nem se fodendo para o que estivesse passando, contanto que houvesse som e luz que embalassem seu entorpecimento. Sabia que Maria vomitava, não era idiota como ela pensava que fosse. Aquele perfume ridículo de flores não conseguia esconder o cheiro acre do fracasso vomitado. Enquanto isso, engolia o seu próprio, dolorosa e forçosamente. Era barato como o uísque que bebia, sabia disso mas, uma vez embriagado, não importava. Uma vez embriagado, nada importava, nem contas, nem o emprego, nem a casa, nem os sonhos da mulher, nem seus próprios. Não lhe incomodavam os medos, os anseios ou as frustrações, estava completa e confortavelmente entorpecido, como na música.
    Assim foi, após o término do jogo, cambaleante para o quarto. Sua mulher já se encontrava deitada, o abajur aceso iluminando um exemplar de "A Cabana" que ela lia com seus delicados-rústicos óculos de leitura. João não se incomodou em dar boa noite, apenas despiu-se e deitou-se, as costas viradas para a esposa. Maria ainda segurava o livro, mas a ansiedade, a mesma que sempre está presente quando se aproxima demais do marido, não a deixou ler. Pôs o livro na mesa de cabeceira, apagou o abajur e deitou-se, a os olhos fixos nas sombras de relevo no teto. Olhou para o marido, as costas nuas cansadas e lembrou-se de quando eram jovens, saudosa. Não, a quem queria enganar? Já não eram felizes então. Porque casaram? Simples... não tinham porque não casar. Já estavam namorando por dois anos, não se amavam mas se bastavam e isso era o suficiente. João tinha arrumado um emprego e seu pai gostava dele. Era bonito naquela época, antes dos maus tratos do fumo e da bebida, do trabalho e do trânsito, as cicatrizes profundas da vida adulta. Era bonito, gostava de falar, lembra-se. Gostava de ouvi-lo falar. Bastavam-se. Era, era o suficiente. Olhou para as unhas, os esmaltes devorados eram a evidência de seu crime. Não, não era o suficiente! Hoje, amaldiçoa aquela Maria de anos atrás, amaldiçoa sua inocência e ingenuidade adolescente. Esperou ter certeza de que o marido dormia e começou a chorar baixinho. Virou-se de costas para ele e usou o travesseiro como lenço.
    João sabia que Maria chorava, chorava toda noite, mas estava embriagado demais para ligar. Lembrava da Maria jovem, deitada em seu colo enquanto ele falava de seus planos. Lembrava da forma como ela arrastava os dedos pelo seu peito, como gostava daquele lento arrastar. Sentia-se cansado, exausto. Odiava seu trabalho. Odiava seu patrão, seu salário, seu cigarro e seu uísque. Odiava até a si mesmo, mas não odiava Maria. Gostava dela. Não a amava, mas gostava dela. E agora, ela estava chorando ao seu lado, como todas as noites. Teria consolado-a, abraçado-a... mas estava embriagado demais para ligar. Dormiu com o peso do álcool ultrapassando o de sua consciência. Maria continuou chorando até dormir, cansada, o rosto e o travesseiro molhados de lágrimas.

    João acordou no horário habitual, tomou banho, escovou os dentes, se vestiu e foi trabalhar.
Maria acordou no horário habitual, tomou banho, escovou os dentes, ligou a televisão e pegou o uisque do marido.

    Ambos respiraram fundo ao acordar. Era o fôlego que tomavam para o mergulho profundo que estavam para dar.

    Mergulharam.

    Mais uma vez.

Um comentário:

  1. Tão azedo, tão triste e morto, uma realidade pálida, desenhada em todos os tons de cinza. Muito não se há de falar, apenas o quanto gostei dessa crônica. Seria uma crônica? Deixemos isso aos especialistas, desse texto tão felizmente narrado, tão felizmente pensado e construído, foi feliz em atingir a mais complexa infelicidade da mesmice, do mecânico, do desamor. Da mesmice dos pratos à mesmice dos nomes à mesmice dos assuntos à mesmice do desgosto sentido pelos dois até à mesmice dos pensamentos, como se tivessem unidos por essa infelicidade e mesmice, unidos por meio da desunião corporal. Não sei, só sei que é uma das coisas que fazem valer a pena ler-te, essas surpresas, esses detalhes cotidianos tão bem dilacerados.

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