terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Prelúdio

Pois o início da vida é no momento em que somos obrigados a confrontar nossos piores medos. Tudo antes disso é o Prelúdio



Geraldo entrou no restaurante desgostoso, odiava aquele lugar; estava velho e não suportava cozinhar... sua querida esposa já havia partido e seus filhos, ingratos, mas muito bem amados, foram trabalhar no exterior e mal lembravam-se dele. Vivia agora às custas da pensão dada pelo governo, era até que generosa, contava com um vale-refeição e só aquele determinado restaurante em quatro quarteirões o aceitava. Começou a se servir, odiava self-services, mas não podia fazer nada... aquela comida insossa e desagradável do restaurante não chegava nem aos pés da comida de sua falecida esposa... mas não podia fazer nada...

Sentou-se, sozinho, na mesa de costume. À sua frente, um homem almoçava com quem deveria ser seu filho e talvez a namorada dele. Os jovens, que estavam de frente para Geraldo, riam delicada, mas deliciosamente, já o velho era moreno e magro, o curto cabelo branco mal escondia uma estranha e longa cicatriz no crânio. Geraldo percebeu a barba mal feita escondida atrás de suas mãos. Mastigava sorrindo e com os cotovelos apoiados na mesa, as mãos juntas no queixo. Havia algo naquele homem que Geraldo... deveria ser apenas as alucinações de um velho solitário. Pôs o purê de batata sem sal nenhum na boca. Fez cara de desgosto, como odiava ter que comer naquele lugar... não entendia como aquelas pessoas poderiam estar sorrindo comendo uma comida dessas.

"Eu tô muito feliz com isso, de verdade, filho" - falou o homem baixo, mas foi o suficiente para Geraldo ouvir. De repente parou de tentar engolir o purê. De repente parou de tentar enxergar. De repente parou de tentar respirar. Reconheceria aquela voz nos confins do inferno, reconheceria aquela voz em qualquer lugar, a qualquer momento, não importava quanto tempo havia se passado...

"Que bom, pai. Eu e Rosane queríamos muito a sua aprovação nis..." - o rapaz se interrompeu. Geraldo percebera que ele o olhava. Tinha que sair de lá. Não conseguia se mexer. O rapaz se inclinou para frente "Você está bem, senhor?" - perguntou a Geraldo, o rosto preocupado.

O pai se virou para trás... era talvez tão velho quanto Geraldo. Seu rosto moreno abrigava mais cicatrizes, uma na orelha, onde faltava um pedaço, uma no nariz, torto, quebrado e nunca consertado, uma na boca, canto esquerdo, cobrindo ambos os lábios. Seus olhos castanhos foram de uma expressão de preocupação e curiosidade para a perplexidade total. Arregalaram-se até as pálpebras não serem mais reconhecíveis. Sua respiração acelerou, acelerou mais, mais... se tornando trêmula, a medida que acelerava. Inspirava e expirava profundamente, mas com dificuldade.

O filho, percebendo o estado do pai, colocou a mão em seu ombro "Pai, você tá bem? Você conhece ele?"

O pai saiu do transe, tentou falar, gaguejou algumas palavras incompreensíveis e começou a chorar, as palmas das mãos viradas para cima abrigavam as lágrimas sucessivas. Chorava com barulho e uma imensa dor, ainda respirava com dificuldade, mas rápida e profundamente. Percebeu que o homem que comia purê de batatas também chorava, o purê escorrendo por entre seus dentes entreabertos, as lágrimas diluindo o prato. Ambos faziam ruídos, engasgavam-se. O casal não sabia o que fazer, o filho ofereceu um lenço ao pai, que recusou.

Quando o pai conseguiu se acalmar, continuou olhando as lágrimas que formavam pequenos canais nos sulcos em suas mãos, deixou-as cair no chão e se levantou. O filho tentou dar apoio a ele, mas foi rejeitado. Cambaleou até onde Geraldo estava sentado, respirando fundo e tossindo.

"Olha pra mim" - pediu, baixo, trêmulo, mas firme, com autoridade.

Geraldo ainda chorava no prato.

"Olha pra mim" - repetiu ele, dessa vez mais firme.

Desta vez Geraldo alcançou um guardanapo, limpou a boca suja de purê e se virou, lentamente. Não ousou olhar nos olhos do velho que o encarava.

"Tá vendo isso?" - perguntou o velho, com a mesma autoridade, apontando para a cicatriz na boca. Geraldo olhou para onde ele apontava e fez que sim com a cabeça. Ainda chorava. "E isso?" - o homem apontou para  a orelha que faltava um pedaço "E isso" - o homem apontou para o nariz quebrado "E isso" - o homem recomeçou a chorar, indicou o topo da cabeça até atrás, por onde a cicatriz passava, com o polegar "E isso" - levantou, trêmulo, a camisa, mostrou suas costas marcadas por cicatrizes e rugas. "Isso tudo. Isso tudo" - homem adquiriu uma expressão de ódio, desprezo "Você que fez".

Geraldo olhava tudo com dor, como se fosse ele a sofrer com os machucados. Ainda chorava, as rugas de seu rosto carregando as lágrimas por um caminho bem delineado.

O velho chegou o rosto mais perto do de Geraldo e olhou profundamente nos olhos dele, de uma forma que não teria como Geraldo desviar o olhar.

"Você me torturou!" - disse ele baixo, com ódio, dor e, de alguma forma, alívio.

"Eu sei..." respondeu Geraldo, ainda mais baixo. "Eu sei..." - repetiu.

O homem balançou a cabeça afirmativamente, o lábio inferior contendo o superior e as narinas abertas e chegou para trás. "Paga pra mim filho? Eu vou esperar lá fora" O filho fez que sim com a cabeça, estava abraçado com a namorada e olhava para Geraldo com espanto. Geraldo, por sua vez, não ligou. Parara de chorar, agora olhava pelo vão entre suas pernas e a mesa, soluçando e rangendo os dentes, a mão apoiando a cabeça.

O filho do homem pagou apressado a conta e foi embora, encontrar o pai do lado de fora. Geraldo continuou na mesma posição, até o garçom perguntar se estava tudo bem.

"Não sei..." respondeu Geraldo, talvez estivesse...

"O senhor quer que eu lhe traga alguma coisa?" - perguntou o garçom, tentando agradar o freguês.

"A conta" - Geraldo pagou a comida não consumida e foi achar outro restaurante, odiava aquele lugar.

3 comentários:

  1. o mais legal foi que, pra mim, a musica casou certinho com a narração e acabou junto... n sei se vai ser o mesmo para o ser invisivel ou de outra dimensão que ler isso (o leitor do blog). Espero que gostem, se puder, quem ler isso realmente, poderia deixar a opinião? Goste ou não goste, deixa aí, eu adoraria ler... claro que não tenho muitas expectativas né... afinal, ninguem le essa droga haha eu mesmo fiquei uns meses sem visitar aqui... bom, se porventura vc veio parar aqui, espero que encontre algo de util

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  2. Muito bom, amigo. Está de parabéns.

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  3. A música ficou de mãos dadas com a escrita e não desgrudaram mais. Uma potencializou a outra explosivamente! O olhar clínico e a aptidão de reflexos pra aumentar os detalhes e fazê-los visíveis é o que mais gosto neste texto, além dessa história, tão rápida, mas que permeia muitos anos, e consegue ser tangível por tamanha solidez! É um conto com veias que bombeiam sangue.

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