quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Feliz Ano Novo!

Sim, eu sei que hoje é dia 5.





Chovia, como em quase todos os Reveillons que já tinha passado. Fabio voltava da joalheria, fora comprar o presente atrasado para sua mulher, além de ser Ano Novo, faziam 24 anos de casados. No ano seguinte fariam Bodas de Prata e ele não fazia a menor ideia de como deveria lidar com isso. Tirou o pequeno embrulho da sacola e colocou no bolso para não molhar. Estava a pé, Reveillon de carro era quase impossível naquela cidade. Resolveu pegar um atalho, queria chegar em casa o quanto antes. Era um beco escuro, famoso por ser ponto de bang, uma evolução do crack, ainda pior em seus efeitos. Foi mesmo assim. Viu figuras escuras, pessoas encolhidas, tomando chuva na cara e não parecendo perceber, gemendo e murmurando coisas sem sentido. Uma das figuras o agarrou pelo casaco italiano. "Midá! Dádinhero! Percisu!", disse a figura desfigurada, antes de cair de cara no chão e cavar o asfalto com a mão nua. Fabio se apressou, fez o possível para ignorar aquelas sombras, cacos do que um dia foram pessoas.



Via a luz, a praça principal da cidade, um simpático conjunto de lojas e restaurantes. Caros, claro. Não é qualquer um que podia frequentar a praça central. Lá era assim, quem tinha dinheiro ficava na praça iluminada por seus postes clássicos, decorada com bancos chiques e arranjos de plantas, frequentava suas lojas e sua igreja barroca. Quem não tinha ficava nos becos escuros ao redor da praça, onde o santuário religioso se restringia às latas de lixo. No entanto, a praça estava movimentada, na verdade, estava lotada. Dezenas, centenas de pessoas erguiam as mãos e bradavam num caos tal que era impossível distinguir as palavras. Em faixas, frases estavam estampadas como "Liberdade é um direito todos, Igualdade é uma necessidade da maioria", "Nós SABEMOS", "Estamos de OLHO EM VOCÊS". Mas o que mais espantou Fabio é que não podia ver os rostos dos manifestantes... todos eles estavam usando máscaras do "Carnevale di Venezia", de "columbinas" até "medicos della pestes", passando por "voltos" e "morettas". Apesar do formato das máscaras se repetirem, nenhuma máscara era igual à outra, fosse por um adorno em purpurina ou por um desenho específico. Fabio entendeu mais tarde que eram para mostrar que, mesmo sendo todos anônimos, mesmo sendo todos parecidos, eram indivíduos diferentes entre si, únicos em sua diferença pura e singular.



A chuva torrencial continuava caindo, e o protesto seguia. Fabio olhou no relógio, 22:40, ainda dava tempo de chegar antes da meia-noite, se corresse. Ele foi passando por entre os manifestantes, quando o primeiro tiro ressoou. Pareceu paralisar completamente o tempo e o espaço. Os manifestantes ansiosos e animados pararam com seus protestos e pareceram ainda tentar entender o que acontecera, Fabio sentiu o pulso acelerar e o pulmão inflar e esvaziar com surpreendente rapidez. Tinha medo, medo de não conseguir chegar em casa, medo de não ver sua esposa novamente, medo de não poder dar-lhe o presente, medo de não poder lhe dar bodas de prata. Reavaliou a importância de sua própria vida para si mesmo e outros ao seu redor e correu. Antes que a multidão se recuperasse do susto, Fabio estava correndo desesperadamente, empurrando e mergulhando nas brechas que encontrasse. Seria muito fácil chegar do outro lado se a multidão não houvesse acordado.



Foi com o segundo tiro.



Os manifestantes se desorganizaram, muitos fugiram, muitos foram encarar o batalhão de choque que os ameaçava com escudos e cassetetes. Fabio tropeçou, temeu cair e ser pisoteado, mas conseguiu se segurar no casaco de inverno de um dos manifestantes. Aos empurrões, conseguiu chegar à calçada oposta, agora precisava procurar o beco que o levava para outra rua. Ali na frente, perto do poste de luz ao estilo dos anos 50. Fabio se moveu com a maior agilidade que pôde e, antes que pudesse entrar no beco, um policial saiu de lá, segurando um cassetete em uma das mão e a outra a postos na cintura, Fabio percebeu pelo seu olhar que estava apavorado. Era um policial novato, com medo e com uma arma a seu alcance. Fabio sabia somar 1+1, sabia que se tentasse passar por aquele beco, o policial atiraria. Restava procurar outra pass... um homem se atirou contra o policial.



O terceiro tiro soou.



Dessa vez não para o alto. Fabio viu o homem cair com a mão segurando a ferida, pôde ouvir nitidamente seu gemido de dor por entre a barulheira do conflito. Viu o rosto por trás da máscara “volto” laranja com uma lua desenhada na fronte. Era o filho do padeiro. O filho do Vincenzo. Qual era mesmo o nome dele? Não conseguia lembrar, mas conhecia o garoto desde que era moleque, sempre comprara pão na padaria de seu pai. Terrível, não é justo alguém morrer assim, não é justo que jovens morram tão facilmente. Não é justo que ninguém morra tão facilmente. A vida não é justa, pensou. Sabia disto, mas sabia também que isso não era algo que deveria aceitar. Nenhuma dessas pessoas aceitava esta injustiça e elas estavam lutando por isso. Fabio foi até o garoto baleado. O policial que atirara nele estava em estado de choque. Sabia do risco que corria, sabia que poderia levar um tiro daquele garoto assustado, mas precisava ajudar o garoto, o filho de Vincenzo. “Chega pra lá! Eu sou médico!”, bradou Fabio, com autoridade, mesmo sabendo que não era médico, era um simples banqueiro, mas precisava fazer alguma coisa. O jovem policial chegou a fazer menção de apontar a arma, mas relaxou o braço. Lágrimas escorriam por sua face. “M-m-m-e desculpe... eu não... ele me atacou... eu só...”, Fabio ignorava as súplicas do jovem, apenas ajoelhou-se diante do filho de Vincenzo e examinou a ferida. O que deveria fazer? O garoto gemeu levemente de dor. “Shhh... Calma, vou concertar você.”, tranquilizou Fabio, mas seu rosto dizia outra coisa. Estava pálido, estava apavorado, não sabia o que estava fazendo, mas sabia que o garoto estava sangrando muito, e se não fossem a um hospital logo...

Fabio pressionou o ferimento de bala e berrou “Chama uma ambulância!”. Nenhuma resposta. Fabio olhou para o policial, nada. O policial fora embora, os manifestantes se preocupavam com os policiais os atacando com cassetetes e os policiais se preocupavam em acertar as devidas pancadas nos manifestantes. O celular estava sem sinal. Gritou por ajuda novamente “Alguém, por favor, chame uma ambulância”, disse ele, já a beira do abismo do luto e do desespero. As respostas eram as mesmas: gritos, alguns ainda pronunciavam as frases decoradas, que agora mais pareciam gritos de guerra e outros eram apenas frases monossilábicas, vogais, de vez em quando engasgadas por alguma consoante. Não, não haveria ajuda e Fabio já sabia disso. Estava por conta própria. Olhou novamente para o filho do padeiro, gemendo de dor, com os olhos semicerrados, encarando Fabio da melhor forma que podiam.



Mais três tiros.



Os gritos passaram a ser de terror puro e verdadeiro. As pessoas que ainda resistiam bateram em retirada, mulheres e homens choravam e corriam. Fabio sabia que se ficasse lá seria pisoteado pela multidão em fuga, junto com o garoto. Tinha uma escolha agora, ou deixava o garoto e fugia para salvar sua vida ou tentava salvá-lo e arriscava morrer. Se salvasse o garoto, ele estaria fazendo dois sacrifícios desnecessários, o mais lógico seria deixá-lo e salvar a própria vida, o garoto já estava morrendo, pelo amor de Deus, ninguém o julgaria por fazer isso, ninguém nem precisava saber. Isso não era verdade, ele saberia e a ideia de deixar uma pessoa morrer para salvar sua vida lhe repugnava. Não conseguiria olhar para si mesmo depois. O que faria? Não tinha muito tempo para pensar. Olhou para o garoto, cujos olhos conseguiram se abrir. Diferentes dos olhos castanhos do pai, Giuliano – era esse seu nome, lembrara agora – tinha olhos azuis, provavelmente iguais ao da mãe que Fabio nunca conhecera. Sua mãe, seu pai, todos os que o rodeavam. Se a ideia de deixar seus amados sozinhos o aterrorizara poucos minutos atrás, agora a ideia de deixar os pais do garoto e todos os que o amavam sofrerem também o abatia profundamente. Fizera sua decisão.



Estavam perto do beco de onde o policial surgira, lembrou-se.



Fabio se agarrou ao garoto ferido – Giuliano – e se jogou para o beco, rapidamente se recolhendo em um canto entre uma lata de lixo e uma parede de prédio. O garoto ainda em seus braços. Viu as pessoas passarem, apressadas, atropelando o que havia em sua frente, tropeçando e se levantando antes que fossem pisoteadas, berrando gritos de libertação e de terror, deixando máscaras e cartazes caírem. Depois, viu os policiais marchando atrás, os escudos transparentes com faixas pretas escritas “CHOQUE” em amarelo, suas pesadas botas pretas esmagavam as máscaras e pisoteavam os cartazes ao passar. Não demorou mais de dois minutos para que toda a confusão acabasse. Um novo tipo de barulho então se fez presente. Urros confusos e animalescos vinham da escuridão do beco. Fabio olhou ao redor e viu figuras como as que vira antes, os zumbis modernos, dependentes para sempre da droga, nem vivos nem mortos, apenas estavam lá. Uma mulher segurava a cabeça com as duas mãos e berrava pelos filhos de volta, um homem de uns 45 anos olhava fascinado e hesitante para uma máscara “volto” cinza-claro partida ao meio, outra mulher, esta de aparentes 20 anos – embora, como os outros, devesse ser mais nova – balançava a cabeça para os lados e a cada duas balançadas gemia um “uh”. Fabio tentou segurar o garoto como segurara Helena no dia em que se casaram e, agora, passando os braços pelas pernas e tronco do garoto, achava que nunca tinha sentido tanta falta de Helena como sentia agora. Lacrimejava quando levantou-se com o garoto no colo e foi para o outro lado do beco. Lacrimejava enquanto via os dependentes da droga, e lacrimejava quando chegou a rua, vazia, mas onde já havia sinal no celular.



Primeiro ligou para a emergência e pediu uma ambulância. Segurou Giuliano até a ambulância chegar, menos de dois minutos depois. Ajudou a por o garoto na maca, deu as informações necessárias e assistiu a ambulância sumir na rua, em meio à névoa da noite chuvosa. Olhou no relógio, 23:00h. Incrível que tudo isso tenha durado 20 minutos. Meteu a mão no bolso para pegar um cigarro e sentiu o pacote do presente da esposa. Olhou de novo no relógio, 23:01. “É, pensou Fabio, deve dar tempo de chegar em casa antes de meia noite, se eu correr.” Um estrondo, luzes; os fogos já haviam começado, aqueles dos impacientes que não querem esperar até meia noite. “Fora de hora”, observou. Mas era bonito.

Fabio seguiu, acendendo o cigarro que pegara no bolso enquanto andava, a luz verde dos fogos timidamente tentando iluminar seu rosto, sem sucesso.

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