terça-feira, 3 de agosto de 2010

Huberth Jones

Ele tateou nervosamente os bolsos do casaco e seu coração acelerou o passo quando ele achou que o cigarro não estava lá. Enfim achou. Nunca tinha sido de fumar, fumava ocasionalmente um mentolado durante o fim de semana, mas o momento pedia um cigarro, pedia alguma coisa para se acalmar. Pegou um cigarro do maço Free Light e o levou a boca, a mão tremendo, quase o deixando cair.
 - Não acredito que fiz isso. - disse ele levando o isqueiro à ponta do cigarro.


Acendeu o isqueiro e tragou com vontade a fumaça, soltando-a num aliviado suspiro.


- Não acredito que fiz isso. - disse de novo, enquanto respirava o ar gelado de inverno, seu casaco de camurça se molhando com a garoa.

Se lembrava do que falara, se lembrava de quem acusara, se lembrava do que fizera, mas era uma lembrança nebulosa, como se tivesse ocorrido há muito tempo atrás, quando na verdade só haviam se passado duas horas. Se lembrava de como, quando acabara o discurso, as câmeras focalizaram nele e se lembrava dos flashes. Se lembrava dos aplausos, das lágrimas e das expressões daqueles que conseguiram invadir o prédio para apoiá-lo. Se lembrava claramente. Mas também se lembrava das expressões dos políticos e dos empresários. Sabia que não teria muito tempo. Seria caçado logo, era uma ameaça. Tragou novamente o cigarro. As pessoas o ouviram, as pessoas o viram e viram todos, viram a verdade. Soltou a fumaça. Ele pode ter começado uma nova era.

Estava com frio. Jogou o cigarro ainda aceso no chão e pisou nele. Entrou em casa, a velha casa de madeira em que vivera a vida toda, possivelmente a última casa de madeira da capital.


"Sem mais guerras, sem mais abusos, uma nova era, uma era justa".


Já tinha começado sua campanha contra essa política assassina já fazia muito tempo, mas hoje, ah, hoje fora o ápice de todo seu trabalho. A emoção de tocar as pessoas é indescritível, a emoção de mobilizar as pessoas para seu próprio bem, o direito de reconquistar seus direitos, de exigi-los. Isto tudo era... indescritível. Era bom... mas era assustador também. Sabia o quanto isso poderia prejudicá-lo. Mas achava que valeria a pena, valeu a pena.

A lareira estava acesa. Então... já? Achava que teria alguns meses para se preparar. Pelo visto a situação estava mais urgente do que pensara. O homem sentado na poltrona de couro se levantou, seu rosto era uma sombra contra a luz da lareira.

- Boa noite, Sr. Huberth. Acho que sabe por que estou aqui. - o homem tinha uma voz grave, "grave como a morte", pensou Huberth.

- Sim... sei... - suspirou ele, a voz falha, nem se preocupando em esconder os espasmos na mão que segurara o cigarro...

- Sr. Huberth, meus chefes são extremamente generosos... e estão dispostos a fazer uma oferta a você. O que o senhor diria de cem milhões limpos, sem impostos, na sua conta imediatamente?

- E em troca, presumo que terei que desistir do meu trabalho e desandar todo o Movimento?

- Presumiu correto.


- Com certeza não. E acho que vocês já sabiam disso.

- Sim... sabíamos - o homem sem rosto suspirou algo que se assemelhou ao bufar de um cavalo - Sabe que terei de matá-lo, não?


- Não... você não tem que me matar. Se você me matar é você quem escolheu isso.
 - O senhor sabe o meu trabalho? - perguntou o homem, se movimentando pela sala, deixando o rosto ser iluminado pela luz da lareira. Seu rosto era bem cuidado e bem barbeado, sem um cravo ou espinha à vista.

- Sei.

- Então deve saber que não posso dar para trás. E deve saber o quanto me pagam.

- Claro que pode! Nosso movimento está dando certo, em breve desbancaremos estas pessoas corruptas e assassinas! Você e eu e o carteiro e o alto executivo e o jornaleiro somos pessoas iguais e seremos tratados iguais! Dinheiro não vai mais significar poder! Dinheiro vai significar posses somente! Teremos oportunidades iguais e...

- Eu gosto de posses, Sr. Huberth. - disse o homem, agora ligando a televisão no meio da sala. A luz deu um sinistro brilho aos seus olhos sem olheiras - não que dormisse bem, mas sabia como disfarçar, era extremamente vaidoso - E gosto de ter dinheiro e ter poder, Sr. Huberth. Mais alguma coisa?


Huberth abriu a boca para falar, e então viu o noticiário anunciando suas notícias. E as pessoas estavam lá. E não eram apenas as que cercavam o Senado, eram muitas, muitas mais. O país estava se mobilizando. Pessoas com faixas e cartazes, gritando pelos seus direitos, gritando por elas e pelas outras. Uma lágrima escorreu pelo rosto de Huberth Jones, seus óculos de lentes finas se embaçaram e seu rosto frágil e magro se contraiu numa expressão, não de desespero como o homem que o mataria pensou, não de medo da morte iminente, mas de felicidade, de orgulho. Conseguira, fizera o que tinha que fazer, fizera seu trabalho e as pessoas ouviram. Poderia morrer feliz. Todo o arrependimento foi varrido de sua mente. Estava pronto. O homem mudou de canal. Um pianista coreano começara a tocar em excelente interpretação o Noturno Opus 9 N° 2 de Chopin.


- Sabe que não haverá como parar estas pessoas. - disse Huberth, por fim.


- Talvez. - disse o homem, impassível - Mas pararemos você. Sua morte será um exemplo. Faremos parecer um suicídio, não se preocupe.


- Nunca acreditarão na minha morte. Saberão que fui assassinado.


O homem deu de ombros.


- Tiraremos na sorte - disse o homem sacando a arma com a mão devidamente enluvada e parando no ato.


O pianista encarnara o próprio Chopin e tocava cada tecla do piano como se fosse sua última.


- Sabe... - disse o homem girando a arma nas mãos - Eu tenho uma pergunta a você, Sr. Huberth Jones, e acho que não poderei protelar mais.

- Pode perguntar. - disse Jones, se sentindo fraco e terrivelmente ansioso e se sentando em uma das poltronas de veludo que estavam na família havia gerações, se ia morrer, que morresse confortável.


- O Sr. é contra guerras e contra as indústrias que mobilizam nossa economia, o Sr. é contra os poderosos que alimentam nossa bolsa de ações, o Sr. é contra o seu próprio país. Porque não é patriota Sr. Jones? Porque não ama seu país?


- Eu amo meu país. - respondeu Huberth - Mas isso não é comparado ao meu amor pelas pessoas. E no momento estes dois estão em conflito.


- Ah, sim. Obrigado por responder Sr. Huberth. - disse o homem apontando a arma para o peito de Jones.


- Por nada. - Huberth esboçou um sorriso, destroçado e horripilante e baixou os olhos, aguardando o tiro inevitável.


Mas ele não veio. O tiro não veio. Olhou para o atirador e ele hesitava, ainda com a arma apontada para Huberth. O atirador tremia um pouco e Huberth teve certeza de ter visto lágrimas brotando de seus olhos. Passou-se talvez uma eternidade onde Chopin reinava e a mente do atirador borbulhava. Talvez houvesse outro jeito... Jones fez menção de falar...
 Mas tão depressa quanto começou, o silêncio terminou com um barulho ensurdecedor.


O assassino fez seu trabalho, e o tiro saiu junto com as últimas notas do Noturno. O corpo de Huberth escorregou pela poltrona e ficou esparramado no chão, ainda observando o atirador, agora muito nervoso - nunca ficara tão nervoso em todos estes anos matando gente -, com seus olhos vidrados e estáticos. O sangue começou a empoçar e sujar o carpete da sala e tudo que se ouvia eram os aplausos vindos da televisão.


Aplausos fervorosos.

4 comentários:

  1. muito bom, adorei o tempo da história aumentando progressivamente junto da musica na televisão, se superou.

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  2. maravilhoso! Essa grand finale ambíguo é explosão aos olhos, esse modo de narrar ocultando o fato (de certa forma) e deixando-nos, pobres leitores, responder com as dicas que dá, é genial e delicioso! Um bom conto é aquele separado em duas partes. A parte em que você lê e a parte depois da leitura, que te faz pensar... E esse me fez pensar e chegar em conclusões divertidas.

    Tem um spoiler filho da puta aqui em baixo sobre a minha leitura do fim do conto! não sei se vc quis passar só isso, mas é tão foda que abre-se um leque de verdades/mentiras.

    Dependendo do meu humor Hubert Jones continua vivo, o assassino, pressionado por si ao ter que matar tão grande ser, fez seu último trabalho, corrompendo-se para o lado de Hubert (não importando que o lado dele fosse o corrompido ou não, creio que quando passamos de lado, ainda mais em momentos como esse, nos corrompemos automaticamente)o tiro treinado explodiu na direção da sua própria cabeça enquanto Hubert escorregava poltrona abaixo, pasmo ou agradecido, ao lado do corpo daquele que seria seu assassino. O assassino perdia-se, dissolvia-se, lentamente na eternidade da morte, mas não deixou de ouvir os aplausos antes de ir. Era seu grand finale.

    Acho que viajei... sempre viajo =O sorry
    mas, wow, parabéns!
    incrível!

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  3. Falar aquilo que acha correto, lutar por seus ideais, sem pensar nas conseqüências, é muito difícil. Ainda mais na política, onde as chances de retaliação são muito maiores. Nos dias de hoje, poucos são aqueles que morreriam por um ideal, por pessoas, muitas, milhares, que nunca chegaram ao menos a saber de sua história ou de sua morte. Nunca gostei de heróis, sempre que em algum jornal se fala de “herói” aparecem histórias desinteressantes e que são usadas apenas para publicidade, mas acredito que o verdadeiro herói é aquele que faz algo por um ideal e não pretende ser reconhecido, nem ao menos que lembrem seu nome, apenas quer que aquilo que acredita viva e floresça. Então, Huberth seria um herói...
    Adorei o texto, Breno! :) Marina H.

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  4. Céus, Horácio, lamento terminar com a sua versão, fiz um texto novo, a continuação... mas tipo assim... um texto nao depende do outro... podemos estar falando de pessoas diferentes e enfim... blá. boa leitura

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